Capítulo vinte e sete

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Quando acordei o peso de Salazar não estava mais sob mim, mas ele ainda estava ali, ao meu lado dormindo, com as pernas embaladas nas minhas, mas agora estávamos cobertos, não sei de foi ele ou Adelaide, independente de quem o tivesse feito não deixaria de ser constrangedor. Estando ao meu lado eu podia observá-lo de verdade, era a primeira vez que eu o via dormindo, sempre imaginei como ele ficaria, esse era um pensamento estranho que eu tinha com qualquer pessoa, afinal, é o único momento em que estamos realmente expostos, que somos totalmente suscetíveis a todo tipo de coisa, é o momento em que relaxamos de nossas preocupações corriqueiras que mal percebemos que estão ali.

Algumas vezes vi Rowena dormir, principalmente depois que Helena nasceu, ela se tornava jovem e divertida, suas feições relaxadas a faziam ainda mais delicada e bonita, quase como uma menina.

Godric vi mais vezes do que poderia contar e antes me lembrava de todas elas, agora algumas dessas lembranças estavam borradas, começando a serem apagadas ou substituídas e eu sabia que o homem deitado ao meu lado era responsável por uma parte disso. A parte mais interessante de ver Godric dormindo era como ele mudava, quase como se fosse outra pessoa, ficava sempre encolhido como uma bola, como que tentando desaparecer, não restava nenhum traço da coragem marcante dele. Então, eu me lembrava das vezes que ele sumia por uns dias e voltava machucado, os nobres nunca tiveram uma forma muito humana de tratar seus empregados e ainda não tem, minha família não compactuava muito com esse tipo de comportamento, mas era inevitável não usar de punições.

Ser meu amigo muita das vezes trazia mais malefícios do que qualquer coisa para ele, mas nunca fui abandona, acho que esse foi um dos motivos que me fizeram amá-lo, Godric me defendia de tudo e todos, inclusive das palavras mais duras de meus pais, acho que por isso sofreu tanto com sua posição inferior. Seu rosto maduro parecia se transformar e voltar a ser de um menino quando dormia, e sempre tive a sensação de que precisava protegê-lo nesses momentos, embora nunca tenha sido preciso.

Mas, Salazar, era a primeira vez e talvez a última que eu o veria assim tão exposto. Suas feições não mudavam dramaticamente como os outros, continuava sério e inexpressivo, mas estava a minha mercê e apesar de sempre dizer que eu estava no controle ainda era assustador assumir o controle e fazê-lo atender minhas vontades, ainda mais por eu não conseguir entender a maioria dos meus desejos. Com ele inerte tinha liberdade de tocá-lo sem medo, contornando seu queixo marcado e sem nenhum rastro de barba, nunca o vira com, Godric sim, raras, mas já o vira com, mas Salazar parecia sempre ter tempo para não deixar nada na face. Suas sobrancelhas negras cheias e marcadas pareciam dar uma moldura aos olhos cinzentos que me desestabilizavam sempre que abertos, seu nariz era reto e perfeito, sem marcas, tão diferente do de Godric que parecia ter sido "consertado" mais vezes do que deveria, era de fato o rosto de um nobre, que nada sofreu, mas a imparcialidade em sua expressão contrastava com isso.

O que ele teria passado para se esconder com tanta precisão mesmo ao dormir?

Tirei minha mão de seu rosto para não despertá-lo e fiquei acariciando seu cabelo negro bem delicadamente, nossa brincadeirinha suja com certeza não era a responsável pela sua exaustão, já que até eu despertara, mesmo tendo adormecido depois. Algo o afligia de uma forma intensa a ponto de sugar suas energias, e eu não fazia ideia do que era.

Salazar é um nobre de sangue puro, diferente de mim que sou mestiça ou de Godric que é nascido trouxa, só Rowena tinha a mesma nobreza sanguínea que ele, acho que por isso se dão tão bem, mas nunca entendi como ele podia ser amigo de Godric e me repudiar tanto, entendia menos ainda agora que estávamos passando por momentos tão... inapropriado.

Toda a suavidade do momento parecia ter se esvarrido assim que Adelaide entrou no quarto, o barulho da porta se abrindo não foi sutil, porque ela trazia consigo uma bandeja, e como uma trouxa ela não podia fazer a bandeja levitar, era uma pena que mesmo tentando ela não tivesse conseguido ser silenciosa. Salazar acordou furioso, se levantando da cama e indo em direção a ela com muita raiva, até mesmo eu fiquei assustada. Como ele podia sair de um estado de inércia e suavidade para algo tão revoltoso em segundos?

- Você deveria ter me acordado da primeira vez que veio aqui! - ele falou com ódio, apontando a varinha para o rosto de Adelaide, que tremia, mas não saia do lugar

- Sereníssimo senhor, perdoe-me por mais esta falha.

Ele abaixou a varinha e saiu do quarto furioso com toda a situação, mas teve piedade e atendeu a clemencia. Adelaide estava em pânico tremendo, e agora chorava silenciosamente, eu deveria ter feito alguma coisa, mas não tive vontade de me colocar no meio dos dois para parar uma briga da qual eu não nem ao menos imaginava o teor, ainda assim, vê-la em prantos me deixava agoniada, fiz um breve movimento em me levantar, mas ela se encolheu e deu um passo para trás, então parei.

- Sinto muito! Por tudo! - eu disse em compaixão a ela

- Queria acreditar! - respondeu em meio a soluços – Mas dessa vez é mentira!

Adelaide deixou a bandeja que estava em suas mãos no chão próximo a porta e saiu. O acesso de raiva de Salazar me assustou, e com certeza a assustou ainda mais, porém alguma coisa a fez não reagir normalmente, na sua justificativa de proteção não houve menção ao seu amor, a relação maternal, a nada que fosse pessoal, ela foi impessoal, usando um pronome de tratamento adequado ao título dele, se pondo em posição de serviçal, o que me levou a crer que ela já havia visto alguns acessos de raiva como esses.

Quantas vezes Salazar teria se perdido de si mesmo assim? Será que ela já vira situações piores? Como aprendeu o que deve fazer para que não aconteça nada? Alguma vez teria sido punida por ele?

Seguindo a péssima tradição que havíamos começado desde sempre, nada entre nós dois acabava de forma saudável e agradável para os dois, então, eu tinha agora novas conjecturas a fazer enquanto torcia para que ele esquecesse de Adelaide por um tempo pelo menos. Se eu ao menos pudesse sair desse quarto poderia tentar investigar alguma coisa. Quando será que isso vai acabar?


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