Capítulo 33.

4.3K 925 1K
                                    

Por muito tempo tive certeza de que a noite em que Carlos foi morto havia sido a mais longa da minha vida. Agora a febre advinda das queimaduras e o vazio entorpecente em meu coração insistiam em provar o contrário.

O simples ato de caminhar era sufocante. Sem a adrenalina esquentando meu sangue era impossível não ceder àquela tristeza tão profunda que fazia meu peito doer e o ar faltar. Raciocinar havia se tornado também uma luta.

Caminhei sem rumo por mais tempo do que deveria, apenas desejando me afastar ao máximo daquela cidade maculada por tantas mortes. Parei para chorar quando me vi nas ruas mais distantes do centro, sentada sozinha na calçada fria. Meus machucados ardiam mais do que nunca, mas ainda não era pior do que a dor no meu coração. Minha prepotência de achar que aquele mundo era pequeno demais para mim trouxe a ruína a todos. Lembrei-me das palavras de Paulina. Mais do que nunca eu tinha a certeza de não ser intocável.

Pela primeira vez em muito tempo o terror incapacitante estava de volta. Um medo cego daquele mundo destruído, da constante sensação de solidão, a certeza no fundo dos meus pensamentos de que não conseguiria resistir por muito tempo. Peguei meu canivete e ensaiei os movimentos de abertura que agora pareciam simples demais, mas logo guardei novamente. Pensei em Leonardo. Eu sequer sabia onde ele e Gustavo estavam, que era o único motivo que me levou até ali. Nunca cheguei a avisar a Carol de que Samuel estava bem.

Limpei as lágrimas, mesmo que fossem irrelevantes diante da chuva forte que caía, e levantei. O frio me distraía da dor e do desespero. Eu não sabia onde estava ou para que caminho seguir; se deveria voltar para a escola ou tentar a sorte buscando ajuda no condomínio. A verdade mais humilhante era que talvez nem soubesse me orientar em estradas desconhecidas, no escuro, para arriscar qual caminho me levaria de volta à escola — enquanto já havíamos desbravado e assegurado várias estradas até o condomínio. Era triste lembrar que a pessoa que me guiou até Blumenau e que melhor conhecia aquele caminho era Hector, e se ele ainda estivesse comigo, tudo seria diferente.

Celso me suplicou para tentar pedir ajuda aos meus, mas os que permaneceram no condomínio eram Carol, Victória, Guilherme e Alex e talvez somente os dois últimos se envolvessem. Também sequer sabia se Melissa havia agido ao perceber que eu e Hector não estivemos de volta no tempo combinado, ou se talvez Celso tivesse sucesso em atrasar ao máximo a investida de Klaus e conseguíssemos apenas resgatar as pessoas que ainda estavam na escola.

Pensar em todas as possibilidades que a minha escolha podia implicar fazia minha cabeça latejar. Não era justo que eu tivesse que tomar aquela decisão. Eu já havia entendido que era nova demais para aquilo, ingênua demais para um mundo tão cruel... E ainda assim as decisões difíceis não paravam de cair sobre mim. As vidas daqueles que eu amava. Tudo porque me atrevera a sair daquele banheiro maldito e enfrentar o mundo apocalíptico.

Caminhei ainda mais pela noite escura, atravessando a periferia vazia da cidade (meu confronto com Klaus deveria ter movido os mortos mais próximos). Quando tomei uma decisão, a dor e o frio já eram tão intensos que eu sequer tinha certeza de que não acabaria desmaiada antes de chegar até qualquer lugar. Com o cérebro tão anuviado, o medo de me perder era ainda maior. Andar de carro por uma estrada desconhecida, sozinha, podia me levar para o meio de um engavetamento repleto de mortos-vivos, como vários que já havíamos visto. Parecia loucura, mas depositei o resto de confiança no homem que me possibilitou lutar pela vida e fugir de Klaus, e esperei que Celso finalmente agiria para manter os seus (e os meus) protegidos. Como confiava na estrada para casa, chegaria em poucas horas, então só me restava torcer para que contra tudo o que acreditávamos, as pessoas da casa se unissem para resgatar tanto aqueles que amávamos quanto completos desconhecidos.

Quando cruzei, de carro, a placa que me informou que eu saía da cidade, percebi como minhas mãos tremiam.


Em DesesperoOnde histórias criam vida. Descubra agora