Capítulo 51.

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Queria não parecer tão patética. Manter no rosto um olhar de poucos amigos para transparecer que, apesar da idade, eu era capaz de me proteger e deveria ser respeitada como qualquer adulto.

Mas eu quase chorei quando vi a galinha.

Senti uma certa nostalgia, lembrando da primeira noite que eu, Tom e Melissa passamos na escola, jantando uma sopa de tomate na cantina. Comidas frescas eram um luxo que pouco dispúnhamos naquele mundo.

No condomínio tínhamos árvores frutíferas — aceroleira, limoeiro e laranjeira — mas eram pés de fundo de quintal que apesar de servirem para sucos ou sobremesas eventuais e era difícil ter o suficiente para todos. Tom e Carol plantaram algumas mudas, mas demorariam anos para crescerem e produzirem, então a maior parte do nosso consumo de frutas vinha do que trazíamos em expedições por comida, quando tínhamos a sorte de encontrar árvores crescidas. Infelizmente não tínhamos muito tempo de procurar especialmente por elas, já que àquela altura do apocalipse evitávamos fazer buscas por casas (tomava muito tempo e os mantimentos que reunimos dificilmente valiam, afinal tínhamos um grupo de mais de dez pessoas para alimentar) e dávamos preferências a mercados ou mercearias.

De hortaliças, plantamos alface, rúcula, couve (que, lembrei, provavelmente estavam prontas agora para colher), salsa e beterrabas. Novamente, apenas o suficiente para integrar às massas e grãos, que constituíam a maior parte da nossa dieta. Além de porcarias industrializadas no geral, simplesmente porque ainda encontrávamos dentro da validade. Pensar em datas de validade era sempre uma dor de cabeça.

Agora carne, ovos ou leite, derivados de animais no geral, eram delírios distantes. Alex atingiu alguns passarinhos com um bodoque nas semanas após a nossa chegada ao condomínio (longe da capital era um pouco mais fácil encontrar pássaros, mas eram praticamente os únicos animais que víamos), mas era tão pouca carne que só servia mesmo para matarmos a vontade.

Por isso ver uma sopa de macarrão com pedaços de batata, cenoura e frango boiando quase me fez pensar que todos os problemas que enfrentamos para chegar ali valiam a pena. E o pedaço de frango nem era grande.

O hospital ficava em uma área afastada, próximo a casas de campo e fazendas. Contava com uma grande área verde, a qual eles transformaram em uma horta logo no começo do apocalipse, além de fácil acesso a outros terrenos com mais espaço para plantação. Tinham um galinheiro e cavalos, furtados das fazendas ao redor também ao começo do apocalipse — o condomínio também ficava próximo de grandes áreas verdes que outrora haviam sido sítios ou fazendas, mas como só chegamos nele após o primeiro mês de caos, quando encontrávamos algum animal, já estava em estado de decomposição.

— Essa cicatriz você conseguiu quando explodiu a oficina? — a voz entusiasmada de Maitê me arrancou dos devaneios com o frango.

Deixei uma risada anasalada escapar. Maria Tereza era dois anos mais nova que eu e teve a sorte de chegar ao hospital logo no começo do apocalipse, depois de perder a família. Ficara ali desde então e agora ajudava com as crianças e com a limpeza, não tendo necessidade de ir às ruas. Olhava-me como uma tiete encantada, como se minhas cicatrizes e feridas me tornassem a mulher mais linda do mundo aos seus olhos.

— Não, essa foi quando o filho da puta enfiou minha cara na lareira — respondi. após mastigar o frango umas cinquenta vezes, aproveitando seu gosto e calor até o final. Apontei para o corte que a bala de raspão abriu na minha bochecha — e esse foi quando o outro filho da puta me deu um tiro.

Antonela, a menina loira um pouco mais nova que Maitê, arregalou os olhos e Agatha, sua mãe, olhou-me feio. Leonardo mal podia conter o riso.

— Rebeca — Hanna me censurou — não queremos deixar as crianças com medo.

Em DesesperoOnde histórias criam vida. Descubra agora