Capítulo 9.

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Quando parecia que sentir o cheiro de pão fresco já estava se tornando uma tortura, Ivete saiu da cantina com duas bandejas em mãos, cada uma com um delicioso pão gordinho. Se para os sobreviventes da escola aquela visão já era luxuosa, para mim, Melissa e Tom era certamente um pedaço do paraíso.

O clima tenso daquela manhã lentamente se esvairava com café e pão frescos, mesmo que não houvessem muitas outras coisas para acompanhar. Se a minha preocupação na manhã seguinte era o que Tom pensaria quando percebesse que não o acordamos para fazer guarda (ou que sequer havíamos feito, afinal não havia necessidade, nosso plano fora descoberto), eu não estava preparada para me levantar enquanto o céu ainda estava escuro, o barulho de vidro se estraçalhando ecoando pelos corredores.

Meu coração galopou enquanto saía porta afora sem sequer colocar um casaco, mas logo percebi que o que quer que fosse, não era um perigo exclusivo para o meu grupo, afinal todos os sobreviventes da escola levantavam-se aos poucos, exasperados pelo som.

Quando nos dirigimos ao pátio, muitos ainda com roupas de dormir, sendo surpreendidos pelo vento frio do início da manhã, deparamo-nos com um dos mastros onde antigamente hasteavam a bandeira nacional agora tombado, atravessando uma das janelas do segundo andar. O vento era implacável, então não havia sido difícil deduzir que conseguira tombar o mastro de metal.

Ainda assim, depois daquele susto ninguém conseguiu dormir, então ficou implícito de que aquele dia começaria mais cedo. Enquanto eu e Melissa sentávamos com Tom para lhe repassar o que acontecera noite passada, a Irmã Graça pediu para que Ivete fizesse alguma comida, mesmo que já estivessem com poucos mantimentos, para que pelo menos as pessoas pudessem se alegrar um pouco.

Agora os olhos que não saíam de nós durante a manhã eram de Gustavo, sentado com Paulina e provavelmente já informado sobre nossos disfarces e motivos. Não era uma surpresa que ele soubesse, já que a organização da escola era simples: Valentino, o médico, era a figura de líder, enquanto aqueles que cuidavam da segurança e reposição de mantimentos ajudavam nas decisões para manter os outros seguros. Provavelmente mais ninguém além de Gustavo, Paulina, Leonardo e Valentino saberiam de alguma coisa.

Lembrei da discussão que tive com Guilherme e Carlos, há tantas noites atrás que mais pareciam anos, sobre o que era ser importante em meio aquele apocalipse. Quando Carlos sugeriu que nós três deveríamos nos encarregar de tomar as decisões, independente das opiniões dos outros, brigamos porque me opus àquela ideia imbecil, porque todos nós éramos úteis e igualmente capazes de tomar decisões. Ainda assim, diante do terror nos olhos das crianças, de Elisa, que corria até Paulina com as mãos protetoras em volta da barriga protuberante, ou da Irmã Graça, que imediatamente agarrou seu crucifixo e começou a rezar quando o barulho do vidro estraçalhado retumbou, parecia justa a decisão de protegê-los daquela forma. Talvez, se ouvíssemos suas opiniões, nem gostariam de lidar com o tipo de assunto que aqueles quatro precisavam. Se eu soubesse o que me esperava, também teria preferido me manter ignorante e protegida.

Como se eu realmente conseguisse.

— Chacina, sai! — Gustavo mandou a vira-lata alta e magra sair de perto de mim.

Senti minhas bochechas quentes, pega no flagra pelos cachorros. Já era óbvio que, por algum motivo, eles sempre perdiam um tempo muito longo me cheirando de cima abaixo.

— Não tem problema. — Sinalizei para Gustavo, levando a mão para Chacina cheirar. Agora que haviam se acostumado conosco, Chacina e Massacre mostraram-se bastante dóceis. — Eu gosto muito de cachorros. — Acariciei com vontade suas orelhas, um gesto devolvido com uma lambida generosa. Massacre, curioso, também veio em minha direção, e em instantes precisei dividir meu carinho entre os dois.

Em DesesperoOnde histórias criam vida. Descubra agora