Capítulo 16.

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O jantar se estendeu noite adentro, muito além da hora em que as crianças foram deitar. Melissa ajudou Ivete na cozinha e jantamos o melhor risoto que eu já comi na vida. Dessa vez quando alguém quis repetir, havia comida o suficiente. Depois de voltar no mesmo mercado que eu, Tomas e Melissa saqueamos, pudemos trazer uma nova leva de caixas lotadas de suprimento para ajudar o grupo da escola.

Sem nenhuma surpresa, Hector conquistou a todos e passou metade da noite respondendo à dúvidas que surgiam: onde estava da primeira vez que viemos, por que teve medo de aparecer e mais indagações sobre nosso grupo. Claro que não foi imediato, mas no fim parecíamos estar todos em bons termos.

Para minha surpresa, até Mei estava calma, mesmo com outros cachorros por perto. Infelizmente o apocalipse mudou até mesmo minha cachorrinha, que mesmo já sendo um cão de guarda antes, tornara-se muito mais silenciosa e atenta. A princípio não gostou muito dos cães de Gustavo, mas depois de algumas horas passou a tolerar a presença deles — desde que não chegassem perto dela ou de mim.

Só depois de comer me dei conta de que Celso não estava presente. Normalmente ele era silencioso, e quando falava, não era comigo. Enquanto decidia se aquela era uma atitude suspeita, comecei a observar Laura e percebi que mesmo letárgica, parecia um pouco mais calma naquele dia. Lembrei-me da última vez que estivemos ali, em como Celso brincara com a filha por quase duas horas, sem se deixar abater pela expressão comumente apagada da criança.

Tentei me ater a ideia de que se ninguém viera falar sobre, provavelmente a questão não era da minha conta.

— Mei é muito bem treinada, Rebeca. Ela foi adestrada? — Gustavo me trouxe de volta à realidade. Não era surpresa ver que se tornara amigo de Mei, e agora acariciava sua cabeça.

— Bom, por mim — dei de ombros, sentindo meu rosto esquentar. Gustavo era um homem de trinta e poucos anos, a estatura de um armário, respeitado por todos. Algo dentro de mim que tinha aquela necessidade de fazer os adultos me levarem a sério ficava lisonjeada sempre que o homem me reconhecia.

— Onde você aprendeu?

— Er... Youtube — respondi, um pouco chateada por não poder dar uma resposta mais sofisticada, mas ele não pareceu decepcionado.

— Entendi, você leva jeito com animais. Trata-os com respeito e eles te respeitam também — ele divagou, sem olhar para mim, mantendo-se atento a Mei.

— Obrigada. Seus cachorros são incríveis também! Mei é obediente, mas nada perto de Chacina ou Massacre.

— Eu era adestrador na nossa ONG, ajudava a socializar os cachorros recolhidos da rua, mas levei algum tempo até pegar o jeito. Vocês têm quantos anos mesmo? Dezoito?

— Eu tenho dezessete, Melissa também. Hector fez dezesseis — corrigi.

Ele assentiu, ainda olhando pra minha cachorra. Podia imaginar o que pensava, algo entre a surpresa de ver pessoas da nossa idade assumindo tantas responsabilidades em um mundo apocalíptico e a melancolia de ver como nos foi negado uma adolescência normal. Tom e Carol sempre falavam sobre esses sentimentos quando nos viam, e ao mesmo tempo que eu me orgulhava, acabava frustrada por ser obrigada a lidar com questões que eu não deveria. Era mais fácil simplesmente evitar pensar em como poderia ser. Dessa forma doía menos.

— Fico feliz que se sentiram seguros para contar a verdade. No começo eu fiquei muito desconfiado, e quando Leonardo e Paulina contaram sobre o disfarce, votei para expulsá-los — Gustavo ergueu os olhos para mim — mas agora entendo os motivos. Muito a perder. Vocês foram inteligentes. Mais do que nós.

— Bom, mais ou menos. Leonardo e Paulina descobriram que havia algo errado logo de cara, se realmente houvesse motivos para temê-los... Bom, estaríamos fodidos.

Em DesesperoOnde histórias criam vida. Descubra agora