Capítulo 46.

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— Que inferno — rosnei, aproximando-me da janela para confirmar o que eu já imaginava: a noite escura agora era iluminada pela bola de fogo que se formou dentro da concessionária — precisamos sair daqui!

— Rebeca, cuidado! — Samuel me alertou no momento em que passei correndo por ele, indo em direção a porta.

Não hesitei em assumir a frente daquele grupo. Não conhecia Bruna e Darlene além das poucas palavras que trocamos; Celso estava visivelmente abalado, ainda que disposto a obedecer; e Samuel nunca havia assumido aquela posição. Segundos eram preciosos e caso nosso plano já houvesse sido descoberto, alguém precisava agir rápido.

A primeira surpresa veio no momento em que cruzei a porta e virei na direção da escadaria. Ainda tinha a lanterna em uma mão e o machado de Leonardo na outra. O homem que estava parado no topo da escada fechou os olhos, por reflexo, quando o feixe de luz encontrou seus olhos. Aquele eu nunca havia visto, mas pelas armas que portava (percebi que vestia um colete à prova de balas), tive certeza que era um dos homens de Klaus. Tudo aconteceu em menos de um segundo, mas a adrenalina fervia meu sangue, deixando tudo em câmera lenta: eu estava a alguns passos de distância dele e aproveitei o momento de cegueira para adiantar-me em sua direção. Não poderia arriscar que ele nos encurralasse — naquele corredor, significaria morte.

Mas mesmo meu avanço súbito não foi rápido o suficiente e, assim que abriu os olhos, ergueu a pistola em minha direção. Queria golpeá-lo com o machado, mas meu movimento foi quase um reflexo ao seu: golpeei a mão armada com o cabo no momento em que o estouro do tiro fez meus ouvidos zumbirem.

O choque me atordoou. Alguns segundos se passaram enquanto eu tentava convencer a mim mesma que ainda estava viva. Meu golpe fora forte o suficiente para derrubar sua pistola no chão e pegá-lo de surpresa, então por quase um segundo encaramos um ao outro, igualmente acuados.

Eu me movi primeiro, então quando ele abaixou para tentar recuperar a pistola, já estava com as duas mãos firmes no cabo de madeira, erguendo o machado acima da cabeça. Meu coração batia com força e o ar parecia rarefeito. Por alguns instantes tive medo de concretizar aquele ato: o quão grotesco seria cravar aquela lâmina na cabeça de uma pessoa (eu a partiria em duas?) Era ridículo como cada segundo parecia se estender por décadas. Ainda assim, de alguma maneira, eu sabia que estava cruzando uma linha na qual eu não imaginava que estaria pronta. Sequer sabia se me sentia preparada para tirar a vida de um ser humano, e apenas naquele dia já havia sido obrigada a fazê-lo tantas vezes.

Porém quando as mãos magras dele alcançaram o cano da pistola, as minhas direcionaram o cabo para baixo, trazendo a lâmina do machado de encontro a sua cabeça. Meu corpo se moveu antes que eu tomasse qualquer decisão, porque uma parte maior de mim só conseguia lembrar continuamente da promessa que fiz a Tom. Porque mesmo tendo perdido tanto em tão pouco tempo, havia algo que não queria que essa dor se estendesse a mais ninguém.

Não esperava encontrar tanta resistência, mas meus braços doeram após o golpe. A sensação de sua cabeça se partindo sob a arma trouxe um arrepio terrível a todos os pelos do meu corpo e senti meu estômago se contrair. Com um só golpe, a lâmina se enterrou até a metade de sua testa e, para o meu completo horror, o homem permaneceu vivo conforme o sangue vermelho pintava seu rosto. Só então percebi que havia soltado a lanterna no momento em que segurei o machado com as duas mãos, mas como se aquele pesadelo nunca tivesse um fim, o feixe de luz ainda me permitiu acompanhar as íris escuras se movendo para cima, como se quisesse descobrir se realmente havia um machado enterrado ali. Podia ser cômico se eu não sentisse que algo dentro de mim morria.

Aquela parte que ainda achava que a Rebeca de antes quem vivia naquele mundo. Ou a própria Rebeca que há um ano atrás que gostava de passar as tarde de domingo cozinhando com a avó. Como tanto tempo havia se passado até que a ficha caísse? Por que só tendo o impulso de enterrar um machado de cinco quilos na cabeça de um homem que eu sequer sabia o nome que eu compreendi que, para o bem ou para o mal, eu não era mais a menina que fugiu daquela cabine de banheiro há tanto tempo atrás?

Em DesesperoOnde histórias criam vida. Descubra agora