Capítulo 1.

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Testei pela terceira vez o corte da lâmina contra o papel e não contive o sorriso: dessa vez o fio estava perceptivelmente melhor.

— Então, você acha que combinou comigo? — A voz de Melissa atraiu minha atenção e desviei os olhos da faca que eu tinha em mãos. Um livro grosso aberto na seção sobre afiar lâminas descansava no balcão entre nós.

Os cabelos loiros de Melissa estavam presos em um rabo de cavalo alto. Ela posava para mim com uma mão na cintura e a outra dramaticamente apoiada no rosto, para que eu pudesse ver o seu traje: a regata de alça finas e a calça legging não eram novidades, mas a saia rosa que combinava com uma bandana de mesma cor amarrada em seu pescoço chamaram a minha atenção — na verdade, era impossível não notar.

— Você parece uma líder de torcida no apocalipse. — Observei, mantendo a expressão séria — está ridícula.

Melissa tentou fingir que estava ofendida, mas nossas atuações amadoras vacilaram no mesmo instantes e explodimos em gargalhadas. Mei, antes dormindo aos meus pés, ergueu a cabeça em alerta, buscando o motivo do alarde.

— Shh... Pronto, garota, tudo bem. — Falei entre risadas, esticando o meu pé calçado em uma meia preta para roçar em suas costas. Minha cachorra olhou para cima, abanando o rabo.

O banco onde eu estava era alto e desconfortável, típico dos assentos que ficam atrás das bancadas dos caixas. Nas posições em que estávamos, parecia que eu estava atendendo Melissa.

— Ah, para! Vai dizer que não sou a sobrevivente mais bonita que você já viu? — Melissa se analisava no espelho enquanto tirava a bandana do pescoço e a amarrava em um laço no topo da cabeça.

— A Mei conta? Se ela conta, você não é. — Alcancei o frasco prateado pousada no balcão e abri a tampa. Ultimamente Melissa sempre carregava um na mochila. O gosto do álcool queimou minha garganta, mas aquele último mês havia me acostumado com a sensação.

A loira mostrou a língua para mim, voltando sua atenção às araras repletas de roupas. O ambiente escuro da loja abandonada era iluminado somente por nossa lanterna-lampião, o que dificultava tanto a minha leitura quanto a busca por roupas da minha amiga.

— Você não vai pegar nada daqui? — A loira disse sem olhar para mim, examinando uma calça jeans simples antes de atirá-la sobre o balcão central da loja.

Olhei mais uma vez para o facão de cabo escuro na minha mão e me permiti sentir mais alguns segundos de orgulho. Eu não estava fazendo qualquer descoberta científica, mas ter de aprender certas coisas dependendo somente de conhecimento teórico não era tão simples quanto parecia. Usei a lâmina da faca como marcador e esmaguei-a com as quase 700 páginas do guia de sobrevivência na mata.

Tínhamos tempo de sobra para fazer aquele tipo de pausa e reunir coisas menos prioritárias, como roupas — e não somente pelo motivo óbvio de que com o apocalipse não tínhamos mais nenhum compromisso. Nosso carro estava abarrotado de caixas com mantimentos, de comida a itens de higiene, resultado de nossos três dias de busca.

Estávamos em uma cidadezinha próxima a Florianópolis, que havia sido uma vitória: não havia o menor sinal de sobreviventes ao vírus, o que significava que todos os mercados e casas estavam cheios; ao mesmo tempo que a quantidade de zumbis era absurda. Era difícil encontrá-los em grupos pequenos, mas organizados em grandes e fatais hordas. Nos últimos dois dias não chegamos a encostar em nenhum morto, preferindo passar despercebidas e usar rotas secundárias.

— Preciso de uma jaqueta nova. — Passei a mão sobre o rasgo em meu ombro direito, desanimada. Aquela jaqueta de couro estava comigo desde que saí de casa. O que não era uma reclamação, claro, pois ela quem ficou entre mim e a mordida faminta de um zumbi na semana passada, quando eu e Melissa também estávamos nas ruas.

Em DesesperoOnde histórias criam vida. Descubra agora