O castelo de Wallguinton continuava o mesmo, exceto pela presença de corvos muito assustadores, devo ressaltar, por todos os lados em cima do gramado extenso - e agora morto -, que rodeava o castelo. Sem incluir a tempestade que agora estava vindo, deixando todo o céu cinza.
Os capangas de Lucy nos tinham pegados sem nem ao menos dando a chance para escapatória. Eles eram duas vezes mais altos e duas vezes mais fortes, dificultando tudo mais um pouco.
Greta mantinha um sorriso nos lábios à medida que atravessávamos o gramado em direção ao castelo; Lucy estaria nos esperando para finalmente cumprir seu destino e matar sua irmã mosca morta, melhor dizendo, eu.
Se fosse até pouco tempo atrás, eu até concordaria com ela. Eu realmente era uma mosca morta quando se tratava de Lucy, ela me deixava vulnerável e sem defesa, deixando que ela fizesse tudo que bem entendesse. Mas, dessa vez, seria diferente, eu iria ter forças para combatê-la. Lucy não iria machucar as pessoas que eu mais amo apenas para ter uma ao lado de quem ela diz amar, controlando tudo ao seu redor como uma vadia ditadora. Eu a colocaria no lugar dela, iria fazê-la pagar por toda a dor e sofrimento que ela causara quando ela não deveria ter nem ao menos nascido.
Lucy não deveria ter nascido.
Lucy era parte de ruim de mim, a parte ruim que eu deveria matar para manter o equilíbrio.
Qualquer um que ouvisse essa baboseira sobre equilíbrio acharia que era apenas uma desculpa de pais para acabarem com a vida de um filha problemática, mas meu pai e minha mãe nunca quiseram um futuro desses para uma de suas filhas. Muito pelo contrário; eles queriam o melhor para nós e, mesmo com todos os defeitos, eles amavam a mim e Lucy e desejavam que nada acontecesse conosco. Mas o que queremos, às vezes, não podemos sempre ter.
Lucy era má, fria e sem sentimentos; ela sempre tentava me culpar por coisas que ela fazia. Talvez fosse mais do que hora de alguém dar uma lição nela. E, dessa vez, eu não iria recuar, do mesmo jeito que eu fiz quando Lucy roubou minha boneca preferida.
Eu não recuarei, eu irei até o fim. Até que tudo esteja em seu perfeito equilíbrio.
Os portões do castelos se abriram, exalando o mau cheiro que vinha de dentro. Era uma mistura de lenha queimada com mofo e mais alguns cheiros que eu não pude identificar.
O castelo, por dentro, estava caindo ao pedaços. Podia se ver, em cada canto das paredes, tenhas de aranhas, as madeiras que haviam sido colocados de ponta a ponta para sustentar o telhado, que estava desgastado e caindo aos pedaços, os móveis - pelo menos aqueles que tinham sobrado - estavam cobertos por lençóis brancos e poeira, juntamente com os espelhos. O imenso corredor nos levaria para o salão de festa, onde os Wallguinton costumavam dar suas festas exageradas, se me lembro bem.
Greta parou em frente à imensa porta, dando um sorriso para mim antes de abri-la.
- Oh, Deus, Branden. - falei, soltando-me do capanga que segurava meu braço e correndo até ele, que estava amarrado a uma cadeira, desacordado.
- Oh, maninha. - ela falou com entusiasmo - Seja bem vinda.
- Branden, acorda. - continuei a chamá-lo, sentindo minha visão ficar embaçada - Oh, Branden, não ouse morrer. - sussurrei e passei a mão por seu rosto, que estava cheio de machucados e roxos, e por seu lábio que estava cortado - O que você fez com ele?
Procurei Lucy rapidamente e a vi sentada em uma mesa do lado oposto da sala.
- Ah, nada. - ela respondeu, descendo e caminhando até mim - Apenas o fiz falar. - ela cruzou os braços.
- Lucy, você não...
- Muito interessante a história de vocês, parece até um romance adolescente. - ela me interrompeu - A irmã boazinha que foi cuidar da mãe depois que a irmã má foi embora... Quão boa você, CarolineLinford Gillbard, é. - ela andou em minha direção e parou à minha frente - Abandonou sua vida perfeita para viver uma vida que nunca desejou em Londres. Diga-me, Caroline, o que te torna tão especial? O que você tem que eu não tenho? Oh, deixe-me responder para você. Você é a que deveria ter nascido! - ela gritou - Você é a queridinha de todos... Você é a parte boa, que guarda ternura, compaixão, perdão e todas as coisas boas de um ser humano. Enquanto eu, eu guardo as coisas ruins, o terror, a dor, o sofrimento!
- Quem te disse isso? - perguntei com a voz rouca.
- Isso é apenas uma história que eu li em um velho livro.
- Você s-sabe? - gaguejei, olhando para ela.
- Você não é a única com recursos. - ela deu as costas a mim - Devo admitir, eu e Greta ficamos perdidas no começo, mas logo depois do seu aniversário, quando lemos o livro, tivemos a certeza do que faríamos. - ela se virou para mim - Mas seu namoradinho ajudou muito enquanto nós o torturávamos.
- A gente pode achar um jeito, Lucy. Nós podemos te consertar.
- Oh, quanta compaixão. - ela ironizou - Mas tem um pequeno detalhe que você esqueceu. Eu não estou quebrada, Caroline! - ela gritou apontando para si - Eu estou melhor do que nunca. Eu me sinto, pela primeira vez, no controle da minha vida.
- Oh, Lucy, o que aconteceu com você? Você nunca se deixou influenciar e, agora, olha o que aconteceu: você se deixou levar pelo papo de uma velha idiota.
- Eu abri os olhos, Caroline, isso foi o que aconteceu. Greta não me influenciou, ela me ajudou a enxergar a verdade. A verdade que nossos próprios pais não tiveram coragem de nos falar. Diga-me,Caroline, você não se sente nem um pouco traída por eles ter escondido a verdade?
- Eles fizeram o que fizeram para nos proteger.
- Proteger a você, você quer dizer.
- O quê? Do que você está falando? Você é a que iria morrer caso a verdade viesse à tona.
- Você realmente acha que eles iriam querer a filha perfeita deles transformada em uma típica garota da sua idade? Você, ao menos, sabe o que garotas da sua idade fazem? - ela falou com ar de sarcasmo - Elas saem, se divertem, namoram, fazem novas amizades, elas têm uma vida. E quanto a você, Caroline? O que você faz? Você se esconde atrás do rei e força um sorriso dentro daqueles vestidos perfeitamente desenhados e arrumados para mostrar o quão perfeita e comportada você é?
- Isso é minha responsabilidade, é a sua responsabilidade também.
- Esse é o ponto, Caroline. - ela apontou para mim - Essa é a diferença entre nós. Eu não assumo essas estúpidas responsabilidades que tiram toda a diversão dos meus anos como adolescente, você sim. E, por isso, você realmente acha que eles queriam que todas as coisas ruins que eu guardo dentro de mim fossem para você? Para que consertar uma boneca perfeita?
- Eu não sou perfeita.
- Mas é claro que você é. Sempre ficou com os melhores vestidos, sempre teve o carinho dos nossos pais, dos criados do castelo, do povo de Florença e dos garotos. E do principal, do Branden.
- Você sabe que isso não é verdade. Você não foi diferente de mim, sempre teve tudo também.
- Eu tinha as sobras.
- Não, Lucy, você nunca teve as sobras, você teve o que você mereceu. Você colheu o que você plantou quando tratou nossos pais como se fossem um daqueles seus amigos idiotas, que só te influenciavam para fazer idiotices. E quando decepcionou o povo de Florença não aparecendo em nenhuma festa do castelo por preguiça e falta de consideração e quando tratou mal os criados do castelo só para lembrá-los de que você é quem mandava no castelo. E não me diga que eu sou a culpada por Branden não te amar só porque você não teve coragem o suficiente para ser sincera com ele. Não me culpe pelo que acontece de ruim na sua vida porque você sabe que eu não estava por perto. Você sabe que eu desistiria da minha felicidade para você ser feliz. Mas as coisas mudam, Lucy. Eu mudei enquanto você planejava a sua vingança estúpida de pirralha mimada e eu não desistirei da minha felicidade para alguém que nem deveria estar aqui.
- Caroline? - escutei uma voz rouca se pronunciar atrás de mim - Caroline, é você?
- Branden. - falei, virando-me para ele - Branden, graças a Deus. - abaixei-me, ficando na altura do seu rosto. Branden abriu seus olhos lentamente, piscando algumas vezes para que pudessem se acostumar com a luz - Você está se sentindo melhor?
- Estou agora. - ele sorriu - Você não deveria ter vindo, ela vai...
- Shiu! Eu vou te tirar daqui, eu prometo.
- Sabe, Caroline... - Lucy falou alto o suficiente para todos os presentes escutarem - Isso realmente não importa agora.
- Nós só precisamos desamarrar...
- Caroline, cuidado! - Branden gritou, fazendo com que eu virasse o rosto para trás a tempo de ver Lucy tentar me golpear com a faca.
Automaticamente, movi meu corpo para o lado, desviando-me da lâmina da faca de Lucy. A mesma se recompôs, manuseando a faca em sua mão, e olhou para mim com um sorriso no rosto.
- Você não sabe há quanto tempo estou esperando por isso. - ela andou até mim, parando em minha frente - Desde o primeiro dia em que eu soube que teria que te matar, eu venho esperando por isso.
Lucy moveu seu pulso, o que fez a lâmina da faca passar a apenas alguns centímetros da minha barriga por conta do impulso que dei quando vi sua mão vir em minha direção. Lucy moveu seu pulso mais uma vez, mas agora tentando acertar o outro lado. E, antes que ela pudesse voltar à sua posição inicial, movi minha perna, acertando sua mão, o que fez a faca ser jogada para longe.
- Nós não precisamos fazer isso. - falei, voltando à minha posição inicial, com os braços cruzados.
- É verdade, não precisamos. - ela respondeu, e eu pude relaxar meu corpo por um segundo - Mas eu quero. - Lucy moveu sua perna e acertou minha costela, empurrando-me para o lado - Ah, como quero. - Lucy levantou seu punho, levando até meu rosto e acertando um lado dele - Quero tanto que deixa cada célula do meu corpo ativa, apenas querendo ver seu sangue pingar.
Outro soco e outro chute na costela. Eu sentia meu lábio latejar e minha costela arder com cada passo que eu dava para me afastar dela.
- Cansada, maninha? Eu ainda nem comecei. - Lucy moveu sua perna mais uma vez, dando um chute em minha barriga, o que fez com que eu caísse no chão - Isso não deveria ser assim. - ela falou, colocando uma perna de cada lado do meu quadril e suas mãos fechadas em meu pescoço - Você deveria estar por cima. - ela apertou suas mãos mais forte, o que fez com que o ar começasse a faltar em meus pulmões.
Virei meu rosto para o lado na esperança de conseguir que suas mãos afrouxassem na curva de meu pescoço, mas a única coisa que consegui foi um olhar triste vindo de Branden, que tentava ao máximo sair de sua cadeira. Ele estava desesperado, e eu podia ver as suas cordas vocais quase pulando de seu pescoço. Talvez Lucy estivesse certa, talvez eu fosse fraca demais para derrotá-la. Afinal, eu nunca faria mal a ninguém, nem mesmo à minha irmã malvada que, na verdade, não é minha irmã, e sim a parte má que deveria estar dentro de mim.
Eu estava sem esperança. Lucy ganharia de vez, e eu já podia ver minha visão turva. Meus olhos estavam quase se fechando quando um brilho me chamou a atenção e não era qualquer brilho. Era o brilho da lâmina da faca e ela estava a alguns metros de mim.
Estiquei meu braço ao máximo, sentindo meus dedos tocarem o cabo da adaga. Estiquei-me mais um pouco e consegui pegá-la entre minhas mãos.
- O mundo é dos mais fortes. - ela falou com um sorriso no rosto e apertando suas mãos ao redor do meu pescoço com mais força. Puxei a adaga, colocando-a entre minha barriga e a de Lucy e logo senti sua lâmina deslizar para dentro da sua barriga de Lucy.
- Não, Lucy. - falei, vendo suas feições mudarem de um sorriso para um rosto pálido e surpreso - O mundo é daqueles que deveriam estar nele. - completei, vendo seu corpo cair com tudo para cima de mim. Ela não estava morta, pois eu ainda pude escutar sua voz rouca em meu ouvido, sussurrando:
- Boa sorte.
Empurrei o corpo de Lucy para o lado, sentindo o ar em meus pulmões outra vez.
Acabou. Havia acabado, e tudo estava bem. Pelo menos, eu esperava que ficasse bem.
Eu cumpri tudo que a maldição havia me pedido, eu matei minha própria irmã - ou a parte ruim de mim, se assim poderia chamá-la - para o bem de todos e para acabar com uma estúpida maldição que me consumiu quase toda a minha adolescência.
Sentei-me no chão, sentindo todo o meu corpo doer. Minha cabeça parecia prestes a explodir, mas, mesmo assim, eu estava feliz. Acabou. Acabou. Eu podia repetir quantas vezes eu quisesse e gritar para quem quisesse ouvir: eu finalmente estava livre e eu podia aproveitar minha vida a partir de agora.
Dei um impulso para cima, ficando em pé.
- Caroline, você está bem? - Lorenzo apareceu ao meu lado, perguntando.
- Estou sim.
E, nesse momento, tudo estava preto.Boa sorte. Isso me atormentava e se repetia, não uma, mas milhares de vezes em minha cabeça.
A imagem de Lucy com suas mãos em volta de meu pescoço habitava meu sonho, mas, dessa vez, eu não podia sair e acabava... Bem, eu acabava morrendo. Mas não era tudo, o pesadelo ainda continuava mostrando como o reino havia ficado depois que Lucy ganhava: tudo estava abandonado, as pessoas ficavam trancadas em suas casas com medo do novo sistema de ronda para pagar impostos, onde quem estivesse fora de sua casa no horário não permitido pagaria uma quantia absurda de dinheiro. Florença tinha virada uma cidade fantasma e a única feliz com isso era Lucy, a rainha e ditadora, que tinha feito todos aqueles que me ajudaram de seus súditos, incluindo papai e mamãe.
E, depois dessa pequena prévia do que poderia acontecer, eu acordei. Segundo mamãe, que estava ao meu lado, eu havia dormido por dois dias inteiros. Nada mal para alguém que acabara de matar uma irmã e tinha recebido sua parte 'má', pensei, descendo as escadas depois de um longo banho.
Algo estava faltando, entretanto. Eu não sentia nada de diferente comigo, apenas aquela vontade de comer um enorme hambúrguer com um copo enorme de refrigerante que fazia meu estômago roncar mais alto, quando coloquei os pés no piso gelado da sala. Vai ver o "Boa sorte" de Lucy fora apenas uma frase sarcástica usada por ela para me colocar medo, pensando que eu viraria alguém como ela. Lucy sempre gostava de ficar com a palavra final, principalmente quando era para me assustar.
Olhei para o lado, vendo um carro do lado de fora da janela. Branden estava colocando as malas no porta-malas e logo meus pés tocaram o chão gelado até a porta aberta.
- Vocês está partindo? - perguntei logo que cheguei à porta. Branden parou o que estava fazendo e olhou para mim.
- Eu não tenho mais nada o que fazer aqui.
- Esperar que eu acordasse não significa nada para você? - perguntei, descendo as escadas - Você me ama, certo, Branden?
- Caroline...
- Você me ama ou não?
- Caroline...
- Responda! - gritei, olhando para ele.
- Eu não te reconheço. - ele respondeu, olhando para mim.
- Como assim você não me reconhece?
- Você matou Lucy.
- Lucy tinha que morrer.
- E você não sente nenhum remorso por isso?
- Ela ia me matar se eu não a matasse. Ela não vai fazer falta a ninguém.
- Está vendo? Lucy era sua irmã, quer você queira ou não. Ela poderia até dever não ter nascido, mas ela era sua irmã, Caroline. Eu vi o seu olhar quando matou Lucy, e aquele olhar não era da Caroline que eu conheci. Você parecia estar gostando de fazer aquilo.
- Eu deveria matá-la, que olhar você queria que eu estivesse? Se eu não fizesse, ela iria transformar o reino em seu pequeno parque de horrores. - recuperei o fôlego - Eu te amo, Branden. - dei um passo em sua direção - Nada mudou. - passei os braços por seu pescoço.
- Não, Caroline, tudo mudou. - ele tirou meus braços de seu pescoço - Eu não tenho certeza se eu realmente te amo.
- Mas você disse...
- Eu não tinha certeza antes e agora muito menos. Eu não posso ficar com você, mas nós ainda podemos...
- Não diga. - interrompi-o e abaixei a cabeça - Apenas... Vá.
- Mas...
- E não ouse voltar, ou falar comigo outra vez.
- Se é isso que você quer.
- Não, Branden, - levantei a cabeça - é isso que você quer. - completei, vendo-o entrar no banco do passageiro do carro.
O motorista deu a partida, e eu pude ver a traseira do carro se afastando, enquanto uma lágrima desceu por meu rosto. Esta seria a última que eu derramaria por ele.
Uma nova Caroline nasceria a partir dali.
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Flawless Curse
Mystery / ThrillerMudar de cidade nunca é uma tarefa fácil. Mudar de país então, era a última coisa que ela desejava, porém, com tudo que tinha acontecido, alguém tinha que cuidar da sua mãe e, obviamente, sua filha estava no topo da lista. Tudo parecia uma tarefa f...