Eu não o vi.
E ele também nem teve a decência de descer para se despedir.
De fato, ele já tinha ido quando Lorenzo subiu comigo para arrumar minha mala. Isso fez com que meu coração batesse lentamente e uma lágrima descesse por meu rosto. Eu esperava que ele, pelo menos, me explicasse o motivo para ter chamado meu pai e, principalmente, ter lhe dado a ideia de me colocar naquele acampamento dos infernos. Eu sabia que eu não tinha sido o modelo exemplar de princesa e, muito menos, de filha, mas qual a princesa que nunca tinha feito uma loucura? Digo, algumas delas saíam depois do toque de recolher e achavam que aquela era a coisa mais louca que elas já fizeram. Eu sabia disso porque foram inúmeras as vezes em que eu saí de meu quarto e fui em direção à parte velha do castelo para poder olhar a lua e as estrelas em cima do telhado. Era ali que eu tinha certeza de que minha vida era mais do que festas com a realeza e conhecer príncipes mais burros que uma porta. Oh, não, eu sabia que minha vida era muito mais do que isso.
Minha vida estava além dos muros daquele castelo e estava apenas esperando a oportunidade para ser vivida.
Pode até ser que eu tenha balançado as estruturas e passado dos limites quando fui parar naquela delegacia, mas, de certa forma, não tive culpa. Quando Ian me chamou para sair daquela festa, eu apenas queria fugir da dor que meu coração estava sentindo naquele momento; queria esquecer o que eu tinha acabado de presenciar. Nunca foi minha intenção invadir uma loja para roubar bijuterias. Eu tinha jóias, e das mais caras do mundo. O que diabos eu queria com uma bijuteria de um Wallmart qualquer? Não fazia nenhum sentindo, mas meu pai não sabia disso, ele pensava - e essas foram as exatas palavras que saíram de sua boca - que eu estava passando por uma fase, aquela que todos os adolescentes passam depois de viverem experiências não tão boas - como matar sua própria irmã por causa de uma maldição -, onde acabam fazendo coisas que elas mesmas não sabem que estão fazendo.
Eu não discuti com meu pai. Eu sabia que ele não estava apenas sendo pai quando me baniu para esse acampamento, ele estava sendo rei também. E eu podia chorar, gritar e implorar, mas ele não mudaria de ideia.
O acampamento não era tão ruim assim, não para as pessoas que queriam estar lá. O acampamento era o local onde os soldados que protegiam o reino treinavam. Lembro-me até do dia em que Lorenzo e seus irmãos foram levados para o treinamento - foram os piores meses da minha vida. Pela primeira vez, após quinze anos, eu realmente tive que escutar o que os nobres falavam nas festas dadas no castelo. E posso ressaltar que nunca escutei tantas futilidades e estupidez em toda a minha vida.
Eles eram treinados como guerreiros, igual àqueles filmes em que usavam espadas e tudo. Lorenzo dizia que armas eram muito rápidas e que espadas mantêm a originalidade de ser guerreiro. Ele também dizia que havia aprendido os mais diversos tipos de artes marciais, o que eu pude notar quando ele voltou e tinha, praticamente, o dobro do tamanho que foi. Estava até parecendo uma porta com ombros tão largos e braços tão fortes. Mas Lorenzo não tinha sido o único de sua família a ir para o acampamento. Como se não bastasse, seus irmãos também foram, fazendo com que minha vida praticamente se tornasse um buraco de tédio sem eles. Porém, eu entendia que eles tinham que ir e não seria só porque eu pedi para que eles ficassem, eles ficariam. Na verdade, eu realmente acho que eles ficariam se eu pedisse para eles, mas como eu poderia ser tão sem coração a ponto de pedir para que eles ficassem depois de saber que seu pai estava muito doente?
Lorenzo e seus irmãos não tinham ido ao acampamento por livre espontânea vontade. Todos eles preferiram ficar em casa e frequentar a faculdade local e, até mesmo, tocar a padaria que seus avós tinha deixado de herança para eles. No entanto, o marido de Marta ficou doente e não aguentava mais os serviços pesados que o castelo exigia que ele fizesse. Como bons filhos, Lorenzo e seus irmãos decidiram ir ao acampamento para que pudessem tomar o lugar do seu pai e ajudar sua mãe financeiramente.
Quando se entrava no acampamento para se tornar um dos guardas do castelo, ganhava-se uma boa quantia de dinheiro para ajudar a família que ficava na cidade. Como eram três, a família de Lorenzo ficou muito bem. Seu pai tocou a padaria e descobriu que não era apenas seus pais tinham o talento para cozinha.
- Você não vai falar nada? - Lorenzo interrompeu meus pensamentos.
- E o que eu poderia dizer? - perguntei, olhando pela janela do carro.
- Eu não sei. Diga que me odeia, que quer me socar na cara, fale alguma coisa. - ele se virou para mim - Sinta alguma coisa.
- Bem, Lorenzo, acho que isso está fora de questão no momento.
- Ah, não, Caroline, não fique chateada comigo. Não gosto quando você fica com raiva de mim. Principalmente, quando fica em silêncio.
- E o que você quer que eu faça o que hein, Lorenzo? - olhei para ele - Abra a janela e saia gritando o quanto feliz estou de ir para um lugar no meio do nada por dois meses?
- O acampamento não é tão ruim assim.
- Para as pessoas que querem ir para lá pode até ser que não, mas para mim pode ter certeza que vai parecer o inferno.
- Você preferia ficar trancada naquele castelo pelo resto da sua vida?
- Bem, entre viver no luxo e ficar presa no meio do mato ficar trancada naquele palácio, não me parece uma ideia tão ruim assim.
- E o que você iria aprender com isso? Nada. Você ainda teria um bando de gente para passar a mão na sua cabeça e dizer que o que você fez não foi nada de errado.
- E o que eu poderia aprender? Como eu deveria usar uma espada? Oh, me desculpe, mas esse é o seu trabalho. Você foi treinado para isso, para me proteger e dar sua vida por mim, se for preciso.
- Uau! - ele falou, surpreso - Bem que ele tinha razão. Você realmente mudou!
- E o que você esperava, Lorenzo? Que eu ficasse a mesma garota depois de tudo que eu passei? Oh, meu amigo, você está muito enganado. - ele abriu a porta do carro e saiu - Ei, Lorenzo. O que você está fazendo? - perguntei. Abri a porta do carro e saí também - Lorenzo, volte aqui, eu estou mandando. - falei, vendo-o andar pelo gramado em direção a um portão - Lorenzo, eu estou falando com você. - parei atrás dele enquanto ele conversava com um homem que estava posicionado em uma torre. Olhei para cima e vi o homem virar de costas, fazendo com que eu pudesse ver uma espada - Quem disse que eu mudei? - perguntei, olhando para Lorenzo outra vez. - Lorenzo, me fala. - falei, estalando os dedos perto de seu rosto - Muito maduro, Lorenzo, você não vai falar comigo? Oh, quanta maturidade. - falei, virando de costas e indo em direção ao carro.
- Branden disse. - ele falou, o que me fez parar de andar - Ele disse que você tinha mudado, que não era mais a mesma e que estava andando com as pessoas erradas. Na verdade, com a pessoa errada.
- E o que diabos ele tem haver com minha vida? Foi ele quem partiu. Foi ele quem decidiu sair da minha vida. - falei, virando-me para ele.
- Mas isso não te dava o direito de afastar todos os que te amam e se transformar em uma... - ele se interrompeu - Deixa para lá.
- Em uma o quê?! - gritei, cruzando os braços - Vamos, Lorenzo, diga! Não seja covarde!
- Em uma versão piorada de Lucy. - ele olhou para mim - Acho que nem Lucy era tão desprezível. - ele sorriu sem humor - De fato, acho que Lucy era a que deveria ter ficado viva porque você está me saindo pior que encomenda.
O portão atrás de Lorenzo se abriu, o que fez com que ambos olhássemos para ele. Engoli em seco quando vi três homens com praticamente o dobro do meu tamanho saírem de lá. Eles pareciam versões reais do Superman e aparentavam ser feitos de aço de tão intimidadores que eram, além da confiança que sustentavam em seus olhares. Era como se eles fossem invencíveis e que nada nesse mundo, nem mesmo a espada do aço mais grosso, pudesse atravessar seus peitorais ou muito menos vencê-los em uma batalha. Não era assim que eu lembrava dos guardas do castelo. A maioria deles era velha, já casados e suas esposas trabalhavam na cozinha ou como arrumadeiras no castelo.
- Lorenzo. - o do meio falou, abrindo um sorriso. Pude jurar que o ar de meus pulmões haviam desaparecido em questão de segundos. Ele não era apenas extremamente alto e forte, ele também era ridiculamente lindo. Pelo que me lembro, o treinamento era baseado nos treinamentos dos antigos soldados que não perderam nenhuma guerra durante as gerações da família Gillbard. Os guardas do castelo nunca haviam sido tão lindos e, se eram, estavam bem escondidos.
De repente, isso me fez lembrar de todas as vezes que Lucy se escondia dentro do guardarroupa por ter sido pega por alguma das arrumadeiras com algum cara extremamente lindo na parte do castelo onde as filhas do rei não podiam frequentar. Se me recordo, Lucy era o motivo disso. Papai havia proibido nossa ida à parte do castelo onde ele cuidava de assuntos burocráticos, políticos e entre outros, e isso se dava ao fato de Lucy não saber controlar seus hormônios. Mas não a havia impedido de fugir uma noite ou outra e acabar aos beijos com um dos guardas do castelo. Lucy ficou com tantos guardas do castelo que a maioria deles foram trocados por homens com um pouco mais de idade e já casados enquanto os mais novos tinham sido colocados nas patrulhas para assegurar a segurança da cidade. Lembro-me também das loucas histórias que ela contava todas as vezes em que chegava no quarto ofegante. Eram raros os momentos em que nós duas ficávamos no castelo e eram ainda mais raros os momentos em que conversávamos sobre nossas vidas.
- E aí, George. - Lorenzo disse, cumprimentando o homem do meio. George olhou para mim e sorriu.
- É ela?
- É sim. - Lorenzo olhou para mim com desprezo - Mas não precisa fazer reverência, ela é um de nós agora. Ela deve ser tratada como os outros. - Lorenzo deu um sorriso de lado.
- Como assim tratada como os outros? - perguntei, confusa.
- Você vai descobrir. - Lorenzo me pegou pela mão - Agora vamos. - ele me arrastou por uma pequena estrada de terra.
- Lorenzo, o que você está fazendo? - perguntei, olhando para os lados. Eu só enxergar mato e mais mato. Provavelmente, eu estava em um daqueles parques do Jurassic Park e só perceberia isso quando tiranossauros rex corressem atrás de mim, tentando me comer - Para onde você está me levando? Lorenzo, você está tentando me matar? Eu retiro tudo que disse, eu me arrependo de tudo que eu fiz. Posso ir para casa agora? - ele continuou a me arrastar pelo braço - Eu não quero ser devorada por dinossauros! - gritei, fechando meus olhos e sentindo-o parar de me puxar.
- Dinossauros? - Lorenzo olhou para mim - Aonde você pensa que está? No filme Jurassic Park?
- Bem, se você olhar em volta, realmente parece um daqueles parques. - falei, olhando para ele.
- Mas você não está. Bem-vinda à vida real, Caroline. - ele recomeçou a me puxar novamente - E principalmente, bem-vinda ao seu pior pesadelo.
- Meu pior pesadelo não é esse lugar. Eu vou estar fora daqui em dois dias.
- Eu não teria tanta certeza disso.
Avistei outros homens a alguns metros de distância. Estreitei meus olhos e vi alguns jogarem outros em uma poça de lama e, logo depois, esses correrem para um obstáculo feito de pneus. Arrepiei-me da cabeça aos pés, pedindo para que eu não tivesse que passar por isso. Eu era uma princesa, não precisava passar por isso.
Lorenzo continuou me arrastando até que chegássemos em frente a alguns garotos. Eles estavam na mesma posição na qual o soldados ficavam quando a família real passava, e estavam tão sérios que eu tive que conter o riso para não soltar uma gargalhada.
- Junte-se a eles. - Lorenzo disse, apontando para o final da fila.
Cruzei os braços e olhei para ele.
- Como é que é?
- Junte- se a eles. Você é uma iniciante agora. - ele disse, cruzando os braços também - Vamos, soldado, isso é uma ordem.
- Isso só pode ser algum tipo de brincadeira.
- Eu nunca estive falando tão sério em minha vida. Na verdade, eu nunca pensei que estaria aqui nessa posição. Você como um dos meus soldados, e eu te dando ordens.
- Talvez porque esse nunca foi o seu habitat natural. Você não nasceu para mandar. - Lorenzo me olhou surpreso. Para falar a verdade, até eu fiquei surpresa com o que eu disse - Lorenzo, eu...
- Iniciantes, para a lama. Agora! - Lorenzo gritou, o que fez com que eu me assustasse. Mas nada se comparou ao que veio depois.
Meu corpo foi brutalmente elevado do chão e um grito rouco ecoou pela minha garganta, à medida que eu era levada para a poça de lama mais próxima. O que me reconfortava era saber que eu não era a única que iria me jogar nessa lama que só Deus sabe o que eles colocaram para que ela parecesse dez mil vezes mais nojenta do que o normal.
Eu estava prestes a soltar um grito pedindo por ajuda quando fui jogada naquela poça. Minhas costas bateram naquela terra pouco macia e, antes que eu pudesse me recuperar, eu estava sendo bombardeada com pequenas bolas de areia molhada por todo o meu corpo. Eu sei que tinha sido uma vadia sem coração, mas isso não lhes dava o direito de me humilharem dessa maneira. Eu os tinha salvado. Se não fosse por mim, Lucy teria tomado o reino e teria feito todos deles escravos e, provavelmente, os teria deixado para morrer de fome. Eles tinham que estar beijando meus pés por isso, não jogando lama em mim.
- Iniciantes, para os obstáculos de pneus! - Lorenzo gritou e logo os garotos que estavam na lama ao meu lado correram em direção aos obstáculos de pneus. Lorenzo se abaixou, fazendo com seu olhar ficasse na altura do meu - O que foi, princesa? Você não é tão durona quanto diz ser? - ele se aproximou mais - Bem, sempre soube que tudo aquilo era puro arranque. Você não precisa dar um telefonema e vai estar fora em dois dias. Você vai estar chorando e implorando para nós pararmos, e aí nós que não vamos querer você aqui.
Senti o choro entalar em minha garganta e o engoli de volta. Eu não iria me humilhar na frente de Lorenzo.
Eu iria fazê-lo comer areia. Literalmente.
- Pois bem, - levantei-me e o vi levantar-se também - você não me conhece tão bem assim.
Pisei fundo e fui em direção aos obstáculos de pneus. Entrei na frente do próximo da fila e atravessei os obstáculos de pneus sem cair.
- Para uma princesa, você que manda bem nos obstáculos. Onde você aprendeu tudo isso? - George perguntou.
- Meu melhor amigo. Nós costumávamos brincar disso. - respondi, indo em direção à fila que se formava daqueles que já tinha atravessado - Mas parece até que ele se esqueceu.
- Esqueceu do quê?
- De como eu sempre fui sua melhor aluna também.
- Iniciantes, formação! - Lorenzo gritou. Eu podia sentir o ódio pulsar em suas cordas vocais. Parei ao lado de um garoto, muito mais alto que eu, que sorria para mim.
- Meu nome é Caroline. - estendi a mão para ele.
- Eu sou Kyle.
- Nada de conversa. - Lorenzo falou, fazendo com que ambos voltássemos nossa atenção para ele.
- Isso é apenas um exemplo do que vocês vão passar nesses dois meses que estarão aqui. Vocês pedirão para sair, alguns vão chorar e outros vão até se revoltar contra nós, mas, no final, quando tudo terminar, vocês vão nos agradecer porque aqui nós não vamos apenas ensiná-los a como se proteger ou a proteger os outros, nós vamos ensiná-los a ser homens e mulheres de caráter. Vamos ensiná-los a dar valor ao que deixaram para trás, a dar valor a tudo que vocês têm e, principalmente, a ensinarem a tratarem a todos com igualdade porque aqui somos todos iguais. Não importa se seus pais são um dos comerciantes da cidade, se você mora no vilarejo mais pobre ou, até mesmo, em um castelo. Quando você se tornar um de nós, não importa de onde vier, todos serão tratados com o mesmo respeito e honra porque todo sacrifício é válido, mesmo que mude você. Pois é você que decide se vai ser uma melhor versão de você ou uma bem pior - ele olhou diretamente para mim. - Vocês não servem ao rei ou à sua família, vocês servem ao povo, porque sem o povo não há rei. - ele deu uma pausa - George vai dizer a divisão dos alojamentos.
Lorenzo deu a volta e caminhou em direção aos alojamentos se nem ao menos olhar para trás, com a cabeça baixa, contando seus passos. Ele costumava fazer isso quando sua raiva ultrapassava os limites que ele não podia mais suportar. Eu conhecia Lorenzo tão bem que sabia que ele, provavelmente, estaria contando os seus passos para que a raiva passasse mais rápido.
- Caroline, você vai ficar no alojamento 25. - George anunciou, e eu voltei minha atenção para ele - Vocês podem ir para os seus alojamentos e se acomodarem. Hoje nós teremos apenas a fogueira para conhecermos mais vocês, mas o verdadeiro treinamento começa amanhã. Iniciantes, dispensados. Exceto você, Caroline. - ele olhou para mim - Você vem comigo.
- Acho que eu sei contar até vinte e cinco. Você não precisa me tratar como criança.
- Acho que você nunca deixou de ser uma criança, de fato. - eu ia rebater, mas ele foi mais rápido - Vamos, você não tem o dia todo. A fogueira é daqui a duas horas e você ainda tem que tirar essa lama toda do seu corpo. - ele começou a andar, deixando-me de boca aberta - Vamos, Caroline, ande logo.
Balancei a cabeça e comecei a andar para alcançá-lo.
- Como assim nunca deixei de ser criança? Digo, já tenho dezoito anos e já experimentei muitas coisas da vida.
- Como beber e fazer algumas outras besteiras? Ser presa, quem sabe. - ele olhou para mim.
- O Lorenzo te contou, certo?
- Nós precisávamos de um motivo para te trazer pra cá.
- Por causa de uma bijuteria? Vamos lá, não é como eu tivesse matado alguém.
- Nós dois sabemos que isso não é verdade, hein?
- Como você... Digo, ele não tem o direito de ficar comentando minha vida com ninguém, muito menos com um desconhecido.
- Ele não fez por querer.
- Não vejo como alguém conta uma história como a minha sem querer. Digo, não é uma história fácil de se contar e muito fácil de se acreditar.
- Bem, admito não é uma história fácil de se contar. Mas não se é todo dia que você descobre que sua melhor amiga anda aprontando por aí na garupa de uma moto e, muito menos, sabe explicar o motivo de ato tão rebelde vindo de uma princesa tão exemplar. - ele me olhou - Meninas de toda a cidade cresciam tendo você como modelo. Elas queriam ser você, queriam estar com você, queriam ter a sua vida.
- Todas querem ter uma vida de princesa, mas aposto que, quando descobrissem sobre a maldição, implorariam para desistir.
- É por isso que você será uma ótima rainha.
Olhei para ele com os ovos arregalados.
- Como?
- Muitas meninas amariam ser princesas, principalmente por causa do luxo que teriam. Mas quando se tratasse de uma maldição, especialmente uma que as impediriam de sair de casa, uma que a fizesse abrir mão do amor do único cara que amou em toda a sua vida e a obrigasse a ter que matar sua própria irmã, elas apenas ficariam em casa chorando até seus olhos começarem a sangrar. Até que alguém segurasse em sua mão e a fizesse cravar uma adaga sua própria irmã.
- Mas isso foi exatamente o que eu fiz.
- Não. Pode até ser que a parte de cravar uma adaga em sua própria irmã seja, mas a parte de ficar chorando até os olhos sangrarem passou longe. - ele olhou para mim novamente - Lorenzo me contou que você estava disposta a morrer pelo seu reino. Ele disse que você fugiu do próprio conforto do seu castelo e tentou fugir para encontrar Lucy e tentar matá-la, mesmo sabendo que você não mataria nem mesmo uma mosca. Você se arriscou, mesmo sem saber se iria retornar e, pelo o que eu escutei de você, sei que você tinha certeza que não iria voltar. Ainda assim, você seguiu em direção à sua sentença de morte apenas para salvar o cara que ama. Não se é todo dia que a donzela se torna a heroína.
- Bem, isso é o que nós vamos descobrir.
- Acho que vocês não estão entendendo. Eu não quero estar aqui e eu daria tudo para sair desse mundo porque esse acampamento é apenas para treinamento de soldados, não para princesas que decidiram aproveitar um pouco a vida. Eu já sou uma mulher. Posso tomar minhas próprias decisões.
- Amadurecer não é apenas sair com amigos para alguns clubes e pubs e beber algumas. Não é apenas sobre ganhar sua carteira de motorista ou ter sua primeira vez, isso é o ciclo normal da vida. Todos vão passar por isso. Amadurecer é como você vai encarar todas essas fases da vida, se você vai continuar se comportando como uma criança e fazer tudo sem pensar nas consequências ou se você vai encarar como um adulto e pensar duas vezes antes de fazer alguma coisa. Às vezes, temos que nos comportar como crianças e fazer tudo em um impulso porque pensar duas vezes te impede de ter os melhores momentos de sua vida. Mas, muitas das vezes, temos que nos comportar como adultos e pensar nas consequências de nossos atos, principalmente em quem vamos machucar com isso. Agora depende de nós sabermos em que momentos vamos nos comportar de qual maneira. - ele parou, o que fez com que eu parasse também - O acampamento pode servir apenas para o treinamento de soldados para você, mas, para aquelas que já passaram por aqui, pode acreditar que é mais que isso. Esse lugar vai mudar você e, antes que você perceba, seus valores estão retomados. Seu alojamento é aqui. - ele apontou para a pequena cabana atrás de mim. Olhei para trás e rolei os olhos - Boa sorte com sua nova vida de camponesa.
Ele sorriu, e eu tive a certeza de que ele estaca caçoando de mim.
Respirei fundo e me virei para encarar os três degraus que me separavam do meu futuro. Subi os três degraus, sentindo um pequeno enjoo em meu estômago, imaginando quantas teias de aranha e quantos tipos de inseto eu teria de encontrar quando abrisse a porta desse alojamento que deveria existir muito antes dos dinossauros.
Abri a porta e, para a minha surpresa, não era cheiro de mofo que eu sentia e, sim, de lavanda. O quarto era grande, considerando que apenas uma pessoa iria morar nele. Logo ao lado de uma escrivaninha, estavam minhas malas. Olhei para o lado e vi duas camas, e uma estava mal feita, com a aparência de que acabara de ter sido usada. Franzi o cenho e dei alguns passos, escutando o chão de madeira ranger debaixo dos meus pés. Em seguida, a porta à minha frente se abriu e uma mulher saiu lá de dentro segurando uma adaga em sua mão.
- Quem é você? - perguntamos as duas ao mesmo tempo.
- Eu perguntei primeiro. - falei, cruzando os braços.
- Eu perguntei primeiro? Sério? - ela soltou uma gargalhada - Você acha que isso aqui é o maternal? - ela andou em direção à cama que estava mal feita - Se você não notou, está muito velhinha para brincar de quem chegou primeiro.
- E você está se achando a Xena, a princesa guerreira, com essa faca.
- Prefiro ser a Xena a uma princesinha fresca.
- Eu não sou... - comecei, mas parei no mesmo instante - Do que você se chamou? De princesinha fresca? Quem te disse isso?
- O quê? Que você é uma princesa? Bem, acho que não só eu, mas toda a população de Florença sabe que você é a filha do rei. - ela pegou uma bolsa e a colocou em cima da cama, abrindo-a em seguida - Mas nem todos sabem o porquê de você estar aqui.
- E você sabe?
- Lorenzo não consegue esconder nada de mim. - ela tirou um casaco de dentro da bolsa e a fechou - E ele precisava também de um motivo para que George deixasse você entrar e, principalmente, para que eu deixasse você dividir o alojamento comigo. A princesinha que virou uma adolescente rebelde depois que conheceu um garoto britânico e decidiu curtir a vida. - ela jogou a bolsa no chão outra vez e pude senti-lo tremer debaixo dos meus pés - Você não merece estar aqui - ela começou a andar em minha direção -, enquanto vários cidadãos de Florença o desejam para que possam dar às suas famílias uma vida que nem que trabalho por um ano inteiro poderia dar. - ela parou à minha frente - Agora me diga por que você, alguém que claramente não quer estar aqui, tem o direito de tirar o lugar deles? - ela deu um passo para trás - Oh, por que o rei não consegue controlar sua filha e com quem ela anda?
- Você não sabe do que está falando.
- Tanto quanto sei, como posso afirmar que, enquanto você estiver nesse acampamento, eu vou tornar sua vida um inferno.
- Cassie, - Lorenzo colocou a cabeça para dentro do quarto - posso falar com você um minuto?
- Claro. - ela olhou para ele e depois para mim - Você deu sorte, novata, - ela começou a andar até a porta - mas não conte com a sorte nos próximos dias. Porque ela com certeza não estará ao seu lado. - ela abriu a porta e, quando estava prestes a sair, virou-se novamente para mim e continuou: - E antes que eu me esqueça, todo mês nós nos reunimos em volta da fogueira para compartilhamos um pouco de nossas vidas. Mas eu acho que todos já sabem como sua vida é, hein, princesinha? Não se atrase.
Ela bateu a porta com força, o que fez com que eu me assustasse.
E foi aí que eu senti as lágrimas caírem por meu rosto.
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Flawless Curse
Mystery / ThrillerMudar de cidade nunca é uma tarefa fácil. Mudar de país então, era a última coisa que ela desejava, porém, com tudo que tinha acontecido, alguém tinha que cuidar da sua mãe e, obviamente, sua filha estava no topo da lista. Tudo parecia uma tarefa f...