Capítulo 32

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Entrei embaixo do chuveiro e deixei a água descer por meu corpo, fazendo-o relaxar por inteiro. Fazia algum tempo que eu não relaxava em um banho. Na verdade, fazia algum tempo que eu não relaxava e parecia que a tensão já fazia parte do meu corpo, como se fosse um órgão ou um membro.
Cassie cumpriu sua palavra quando disse que transformaria minha vida em um inferno. Desde que cheguei aqui, há um mês, ela havia feito minha vida um pouco mais complicada a cada dia que se passava e, como se não fosse possível, ela fazia questão de me lembrar o quanto eu não era bem-vinda e o quanto ela desejava que eu pedisse para sair, ajoelhada aos seus pés. Até eu pensei que faria isso depois da primeira semana nesse lugar, mas a vontade de mostrar o quanto ela estava errada a meu respeito me fazia sempre deixar para a semana que vem, e na próxima, e na próxima... Quando percebi, já fazia um mês que eu estava nesse lugar.
Lorenzo me ignorou completamente durante esse mês. Por mais que eu pudesse ver seu olhar suplicante todas as vezes que Cassie me destratava, ou fazia com que eu repetisse uma rotina inteira pela quarta vez, ele não fazia nada. Apenas olhava, enquanto ela se divertia me maltratando. O treinamento que Cassie comandava era composto apenas por uma integrante, o que permitia que ela desse total atenção para cada passo que eu dava, tornando o meu treinamento praticamente impossível. Como se não fosse pior, ela decidira que o treinamento que eu teria seria o formazione precedente, um dos mais velhos treinamentos aplicados no acampamento e um dos que se apresentava da lista de "praticamente impossíveis" entre os novatos e veteranos. Enquanto os outros aprendiam a atirar com armas de fogo, eu estava sendo nocauteada com golpes vindo de uma espada feita de bambu.
Eu não acreditava naquele mito que dizia que as pessoas sonhavam no dia em que pudesse trocar de papeis com nobres e fazer deles escravos de todas as suas vontades. Não acreditava até o dia em que conheci Cassie. Sei que nobres poderiam ser desprezíveis, eu conheci alguns deles e desejei nunca mais ter que encontrá-los outra vez, mas isso não era motivo para maltratar um ser humano. Na maioria das vezes - senão todas -, você realmente não sabe o que se passa na cabeça de uma pessoa, você não sabe o que ela passou até se transformar no que é hoje. Cassie não tinha ideia do que eu havia passado, até porque se eu apenas começasse a contar a historia da minha vida, ela, provavelmente, deixaria toda aquela arrogância de lado e começaria a correr, desejando nunca mais cruzar meu caminho.
Ri sem humor e desliguei o chuveiro. Escutei o barulho da porta batendo, o que fez com que eu rolasse os olhos. Só pode ser Cassie esperando para fazer minha vida um pouco mais difícil, pensei, começando a me enxugar.
Era típico de Cassie me maltratar não apenas na hora do treinamento, mas dentro do alojamento também. Foram as inúmeras as vezes em que eu tive que sair no meio da noite para procurar meu colchão e encontrá-lo em cima do telhado do alojamento de Lorenzo e George. Como Cassie sabia que eu e Lorenzo não estávamos tendo o melhor momento de nossa amizade, ela fazia questão de me irritar o máximo possível quando o assunto era Lorenzo. Até que eu desisti e, em uma dessas noites, me encontrei com Kyle, que queria fugir do seu colega de quarto que roncava como um porco. Juntos, encontramos um alojamento, um pouco mais afastado dos outros, que se tornou nosso refúgio de todas as noites.
Kyle era um cara incrível e estava no acampamento apenas pelo dinheiro e regalias que os guardas recebiam. Ele sempre disse que não esperava a hora de sair do acampamento para poder ir para faculdade, já que queria ser engenheiro. As famílias dos guardas recebiam uma boa quantia em dinheiro quando seus filhos eram escolhidos para ir ao acampamento e esse era o maior motivo para a maioria de eles estarem aqui. Não era apenas sobre o dinheiro, também tinha os estudos que seriam pagos para que eles escolhessem se continuariam sendo guardas ou seriam algo a mais. A maioria dos homens que eram trazidos pra cá era composta por homens de famílias que não tinha uma condição de pagar por uma faculdade sozinhos ou eram famílias em que os pais já estavam velhos demais para continuarem servindo ao castelo.
E em uma dessas conversas, eu descobri o motivo de Cassie me odiar tanto. Segundo Kyle, Cassie entrou no acampamento para ajudar o seu pai, um senhor doente que passava a maior parte do tempo deitado em cima de uma cama, pois suas pernas já não respondiam aos seus comandos. Ela precisava do dinheiro e de um plano de saúde que pudesse pagar pelo tratamento de seu pai e, ao entrar no acampamento, ela conseguiu isso. Porém, a felicidade não durou muito, pois seu pai faleceu meses depois. Cassie ficou devastada, mas alguém teria que pagar as contas da casa e seu irmão não tinha atingido a maior idade ainda, então ela assumiu o posto de uma das instrutoras do acampamento.
- Mas o que isso tem a ver comigo? - perguntei a Kyle na hora - Minha família só tem ajudado a família dela. Por que diabos ela me odeia tanto?
- Você roubou o lugar do irmão dela de entrar no acampamento esse ano. Lorenzo decidiu que você entraria, pois precisava mais do qualquer outro, e Cassie ficou furiosa e quase estrangulou Lorenzo na mesma hora. Foi aí que ele explicou sua história.
- E como você sabe disso?
- As pessoas falam principalmente o motivo de você ser a única a ter aquele treinamento.
- Pensei que era só por ciúmes do Lorenzo, mas agora eu entendo. Não que justifique o jeito que ela me maltrata.
- Às vezes, eu acho que Lorenzo vai falar alguma coisa.
- Lorenzo me odeia. E eu não o culpo por isso.
- Ele vai te perdoar, você vai ver.
- Assim espero.
Saí do banheiro, lembrando-me da última conversa que eu e Kyle tivemos em cima do telhado do velho alojamento. Kyle era o único amigo que eu tinha, o único fique não me olhava com o nariz empinado por causa do meu título e entendia o que eu estava passando. Ele realmente entendia.
Andei em direção ao espelho e olhei meu reflexo no mesmo. Eu estava mais magra e um pouco musculosa, mas cheia de hematomas por causa do treinamento de espadas de bambu. Cassie tinha acabado comigo. Peguei minha calça em cima da cama, a vesti em seguida e senti minhas costelas doerem enquanto eu me abaixava.
Dei um pulo logo que escutei a voz de Kyle vindo da porta.
- Você deveria colocar um remédio nisso.
- Meu Deus, Kyle, você não bate não? - perguntei, começando a colocar minha camisa.
- Só quando Cassie está aqui. Ela é meio assustadora. - ele falou e fez uma careta enquanto andava em minha direção - Como você está se sentindo?
- Bem. - respondi, sentando-me na cama para colocar meus coturnos.
- Tenho certeza de que você consegue formar uma frase. - ele se sentou ao meu lado.
- Eu estou bem.
- A maior mentira de todos os tempos.
- O quê? - olhei para ele enquanto amarrava os cadarços - Eu estou bem. Não há nada com o que se preocupar.
- Isso é o que me preocupa. Você não se importa consigo mesma.
- Do que você está falando?
- Devemos começar pelo fato de que eu posso ver a dor em seus olhos em todo movimento que você faz e, mesmo assim, você não pede um dia de descanso para Cassie.
- E se eu pedisse, ela daria? - coloquei meus pés no chão - Claro que não, Kyle, ela me odeia.
- Por que você não fala com Lorenzo?
- Porque ele me odeia também.
- Não, ele não te odeia.
- Claro que sim.
- Mas vocês eram tão amigos.
- Eu sei, mas as coisas mudaram agora. - levantei-me - Eu causei muito mal a Lorenzo, e não só para ele. Eu mereço o que eu estou recebendo.
- Ninguém merece ser espancada e ficar cheia de hematomas.
- Você quer que eu desista? Quer que eu vá chorando pedindo para que Lorenzo ligue para o meu pai para me tirar daqui? Todo o meu esforço nesse mês que eu estive aqui não valeria para nada. Seria como desistir. E eu não quero fazer isso.
- Parece que você gosta de apanhar.
- Na verdade, eu não gosto. Mas ver a cara de ódio de Cassie depois que eu termino uma sequência de obstáculos sem um erro não tem preço. - falei, levantando-me e sentindo uma dor nas costelas.
- O que foi?
- Ela me bateu com força com aquele bambu.
- Eu tenho um remédio. Aliás, era isso que eu vinha te entregar. - ele se levantou - O Lorenzo disse que você talvez fosse precisar. - olhei para ele - Acho que ele quer se redimir.
- Ele pode se redimir não me olhando com cara de pena.
- Levante sua blusa. - ele me ignorou, e eu fiz o que ele pediu. Kyle passou o remédio em cima do grande hematoma que tinha em minhas costelas. Senti o remédio gelado em contato com minha pele, fazendo- a queimar - Se estiver queimando, quer dizer que o remédio está começando a sarar.
- Você já pensou em ser médico? Você tem jeito com as pessoas. Você as entende e, ainda por cima, resolve seus problemas.
- Talvez ele possa resolver o seu.
Olhamos os dois para a porta, onde Cassie estava parada com aquela cara de psicopata que ela tinha.
- Vocês sabiam que não é permitido que um homem e uma mulher fiquem sozinhos em um alojamento, principalmente se um deles está quase sem camisa? - ela perguntou. Afastei-me de Kyle e abaixei minha camisa.
- É mesmo, Cassie? Então você deveria parar de fazer visitas noturnas no alojamento de Lorenzo. - o sorriso no rosto dela desapareceu - O que foi, Cassie, não gosta que as pessoas comentem sobre sua vida? Pois deveria parar de dar palpite na dos outros. Vamos, Kyle.
Peguei Kyle pelo braço e caminhamos até a porta. Desviamos de Cassie e saímos do alojamento em direção à pequena estrada de areia que iria nos levar até o local onde a fogueira seria.
- Soldado, eu ordeno que você volte aqui! - ela gritou da porta do alojamento.
- E eu lhe peço, encarecidamente, que você cale a boca. - falei, olhando para ela, enquanto andava de costas.
- Caroline! - Kyle me pegou pelo braço, fazendo com que eu olhasse para ele - Você não deveria fazer isso. Ela é sua supervisora.
- Bem, ela atravessou essa linha quando colocou minha vida pessoal no meio do meu treinamento.
- Eu só acho que você deveria tentar ter o pavio mais longo quando o negócio é a Cassie.
- Maior do que eu já tenho?
- Quase infinito.
- Não posso prometer que vou, mas posso tentar.
- Isso já é um começo. - ele se sentou em um tronco e me puxou para o seu lado.
- Se não fosse você, eu estaria perdida nesse lugar. - falei, colocando minha cabeça em seu ombro. Olhei para frente e vi Cassie chegar com Lorenzo ao seu lado. Ela estava bufando.
- Acho que já podemos começar. - George falou - Então, quem quer começar? Alguma crítica? Alguma reclamação? Alguma recomendação? Alguém quer falar alguma coisa?
A fogueira era parecida com uma terapia em grupo. Todos vinham e falavam dos seus problemas, suas famílias, histórias engraçadas ou não. Era um modo de deixar com que os soldados lembrassem de suas famílias e se esquecessem um pouco das dores físicas.
- Acho que a Caroline deve começar. - Cassie falou, o que fez com que todos olhassem pra mim - Desde que ela chegou, ela não falou nada. É como se mal a conhecêssemos.
- Acho isso impossível. Todos sabem quem eu sou e minha histórias.
- Mas não se deve acreditar em todos os rumores.
- Rumores? Acho que você quis dizer histórias.
- Isso também.
- Como assim isso também?
- Você sabe, as pessoas falam.
- Melhor você falar logo de uma vez e dizer aonde você quer chegar do que ficar enrolando. Outras pessoas querem falar.
- Vamos falar da sua irmã.
Engoli em seco.
- O que você quer falar sobre ela?
- Devo começar pela irresponsabilidade ou você quer falar da vida leviana que ela levava em Londres?
- Cassie, você deveria controlar sua boca. - avisei, respirando fundo.
- Por quê? Por acaso, eu estou dizendo alguma mentira? Sua irmã não era uma irresponsável e, por causa dela, vários antigos guardas tiveram que voltar à ativa porque ela não conseguia controlar a língua?
- Cassie, você deveria respeitar a memória de Lucy.
- Por quê? Ela respeitava alguém desse acampamento? Quantos de vocês não foram levados até o rei com ordens de não encostarem um dedo nas filhas dele, caso contrário seriam cortados os fundos de ajuda financeira para suas famílias?
- Se você olhar em volta, Cassie, a maioria deles são novatos. E pelo o que eu saiba, não estiveram com Lucy.
- Que você saiba.
- Eu já escutei demais. - falei, levantando-me.
- Isso mesmo. Volta para sua caminha e vai chorar sentindo falta dos seus criadinhos que faziam tudo por você.
- Você não tem coração não, garota? - perguntei, virando-me para ela.
- Eu tenho sim. Quem não tinha era sua irmã e, pelo visto, você também. Nenhum telefonema, nenhuma carta, nem mesmo uma mensagem trazida por alguém...
- Do que você está falando?
- Do fato de você não ter ninguém. Vai ver o mal da Lucy passou inteiramente para você. Vai ver é uma coisa de genética.
- Você sempre tem que colocar as pessoas para baixo para essa sua mente diabólica se sentir melhor? Você fala como se só você tivesse sofrido na vida!
- E você já sofreu alguma vez? Pelo quê? Papai não deu o sapato do mês que você queria?
- Não, Cassie, eu não sou fútil a esse ponto. Eu perdi alguém que eu amava, não só uma pessoa, mas várias. Você sabe como é perder alguém?
- Sei, eu tive que te aceitar nesse acampamento enquanto meu irmão podia estar aqui. Aceitar alguém que foi arrastado porque o papai não conseguiu controlar.
- Não, Cassie, eu estou falando de perder alguém de verdade e, ainda por cima, ser motivo que a levou embora.
- Caroline.
- Não, Lorenzo, ela tem que saber, não era isso que era queria? Então é isso que ela vai ter. Ela tem que saber que eu também sofri e, por mais que ela me odeie por ter roubado o lugar do irmão dela nessa droga de acampamento, ela não tem o direito de me tratar dessa maneira. - olhei para Cassie - Você, pelo menos, tem ideia do que está falando? Você, por acaso, conheceu alguém da minha família? Você conheceu Lucy? E quando eu falo de conhecer, não digo apenas o que as pessoas falavam dela ou a ideia que você tinha dela, eu falo de conversar, de conviver. Você conviveu com ela, Cassie? Porque, pelo o que eu estou vendo, você deixou bem claro que prefere a forca a conviver com alguém da realeza. Você não me conhece, você não conheceu Lucy ou algum membro da minha família. Você acha que conhece, mas, na verdade, você não sabe um terço do que se passa naquele castelo e, muito menos, o que se passa dentro da cabeça de uma pessoa como eu. E sabe por quê? Porque você não ia aguentar um dia na minha vida e não estou falando apenas de ter que usar aqueles vestidos patéticos, saltos desconfortáveis e ter que aturar pessoas querendo tirar proveito de seu título a cada segundo que você respira. Eu estou falando de muito mais, de algo que as perfeitas filhas do rei jamais poderiam imaginar em passar. Você sabe por que as festas são todas feitas dentro do castelo? Por que nem mesmo a praça da independência pode ser usada no dia da independência? Você sabe por que o rei não pode passar das 23h em uma das feiras das nações que acontecem todos os meses nas ruas de Florença? Você, pelo menos, tem alguma coisa dentro dessa sua cabeça que só vê o pior das pessoas e julga os outros sem nem ao menos ter trocado uma palavra com eles, hein? - dei um passo para frente - Qual a desculpa mesmo que eles usam? Oh, porque as filhas do rei não podem. E não tem nada a ver com sonho de beleza, afazeres reais e fúteis do dia seguinte, tem a ver com proteger as pessoas que nós amamos. Tem a ver com proteger nosso reino e todos aqueles que estão nele. - dei outro passo à frente - Aposto que você já ouviu falar da maldição menzanotte, certo? Mas é claro que sim, qualquer cidadão sabe da lenda que acompanha o sobrenome do rei. As pessoas gostam de lembrar que algo de ruim já aconteceu em nosso reino e que nós sobrevivemos a isso, mas o que eles não sabem que ela não só existe, como foi alterada para que fosse "bem vista" para os leitores do livro. E você sabe o que diz nessa versão ilimitada? Que o bem deve prevalecer sobre o mal. A rainha daria a luz para duas meninas, sendo que a primeira só traria sentimentos ruins para o reino e a segunda seria pura de coração para que a maldição fosse quebrada, fazendo com o que o reino vivesse feliz para sempre. Para isso, a garota pura de coração deveria matar sua própria irmã pelo bem de todos. E caso ela não o fizesse, sua irmã tomaria o reino e só traria mal, desgraça e sofrimento ao seu reino. As duas teriam que se enfrentar depois que tivessem idade o suficiente, depois que as palavras "eu te amo" saíssem de sua boca para se libertarem da maldição. E você sabe o que é mais sarcástico nisso tudo? Ambas as irmãs terem se apaixonado pelo mesmo homem. Como se não pudesse piorar, ele tinha que ser descendente da bruxa que jogou a maldição em sua família. O que torna essa história mais sinistra é um livro velho, escrito por um velho, que decide o destino de um ser humano. E o pior é as pessoas acreditarem nele e fazerem com que eu matasse minha própria irmã.
- Você matou sua irmã? - ela gaguejou.
- Eu precisava fazer isso, não só para ficar com o mocinho, que acabou me abandonando no fim, mas também para proteger o meu povo. E sabe o que é o pior disso tudo? É que eu não posso sentir nem um pingo de arrependimento, nem um pingo de remorso e, muito menos, saudade da minha própria irmã porque ela queria transformar Florença em um inferno. Mas você, Cassie, me fez pensar que talvez eu deveria ter morrido porque aí você saberia o que é o real sofrimento e o que o inferno se parece. Porque, mesmo fazendo tudo por esse reino, você abre essa sua boca para soltar piadas patéticas e sarcásticas sobre pessoas que você nem conhece. - cheguei mais perto dela - Lucy podia ser uma vadia sem coração e até querer transformar Florença no reino em que todos a temeriam, mas, no fim do dia, ela ainda era minha irmã. E ela ainda é minha irmã. Então, se você abrir essa boca outra vez para falar mal dela, eu vou fazer com que sua vida se torne um inferno e pode apostar que Lucy seria comparada a um anjo depois que você provasse do meu veneno. - limpei as lágrimas do meu rosto e coloquei-me ereta outra vez - E se o problema é o dinheiro, não se preocupe. Eu posso arranjar para você, pois dinheiro não é problema para uma pessoa como eu. Aproveitem sua fogueira.
Girei em meus calcanhares, pisando fundo para longe daquela fogueira. Eu podia sentir as lágrimas ainda descerem por meu rosto, além de ofegar a cada passo que eu dava. Parecia que eu havia tirado um peso de minhas costas e agora a única coisa que me restava fazer era me derreter em lágrimas, como eu nunca havia feito. Não só por Lucy, mas por todos aqueles que eu maltratara ao longo do meu caminho. Eu sabia que o que eu tinha feito não era certo e, muito menos aceitável. Eu estava certa ao me divertir, mas, ao ultrapassar os limites, acabei perdendo a razão e aqueles que eu mais amava, um a um. Papai me odiava, Lorenzo me desprezava, Branden havia ido embora, mamãe não me escrevia e, muito menos, Melanie tentou ligar. O pior de tudo era que eu tinha perdido Lucy.
Às vezes, esconder de nós a verdade sobre a maldição realmente fora preciso, pois a maldição era a única coisa que nos mantinha juntas e fazia com que aproveitássemos tanto tempo juntas porque nós entendíamos a dor. Uma dor como ninguém conseguia. Ninguém realmente sabia o que era viver com aquela maldição. Podiam até imaginar, dar palpites e admirar o quanto éramos fortes por estarmos sempre sorrindo sem deixar um rastro do que realmente acontecia quando a noite chegava. Mas a imaginação não chega nem um perto quando se está vivendo o momento - no nosso caso, vários momentos.
A maldição podia ter acabado e tirado a única pessoa que me entendia, mas ela não tiraria a saudade que eu sentia no meu peito. Eu amava Lucy e não teria um ser humano que diria o contrário.
Abri a porta da cabana, sentindo-me um pouco tonta. Coloquei a mão na testa e a senti molhada. Apoiei-me no móvel ao meu lado, até que minha vista ficou turva. E como um blackout, eu pude sentir todo o meu corpo cair no chão de costas. Fechei meus olhos, sentindo todo o meu corpo arder de baixo para cima e, logo, um grito saiu da minha garganta. Meu coração pulava do meu peito como nunca tinha feito antes, apenas quando eu estava perto de Branden. Antes que eu pudesse abrir meus olhos outra vez, ou soltar um grito pedindo ajuda, o rosto de Branden apareceu em minha mente. Seus olhos esverdeados. E, oh, seus olhos me encarando enquanto Londres se tornava nossa em cima daquela roda gigante. Seu sorriso quando viu o meu sorriso ao invadirmos o aquário dos golfinhos. Seus lábios sobre os meus me fazendo sentir todo o amor que ele carregava dentro do peito. Sua voz pronunciando que não iria me abandonar, e sua doce voz quando dizia com todas as letras que me amava. Seus braços fortes quando me rodeavam, parecendo que nunca iriam me deixar sair, ou quando ele estava bravo comigo, aqueles mesmos braços cruzados em seu peitoral de uma forma autoritária. Oh, como eu amava quando ele fazia isso.
Por último, seu corpo sobre o meu enquanto nos tornávamos um naquela noite em minha casa quando a chuva caía lá fora. Por mais que os acontecimentos seguintes tenham estragado uma reconciliação, eu não me arrependia nem por um segundo por ter feito aquilo.
E a imagem havia trocado outra vez de lugar. Agora, eu estava em Londres. No primeiro dia de aula, no momento em que eu conheci Melanie. Logo depois, estávamos no jogo, olhando os garotos. Depois, estávamos em minha casa, no momento em que eu lhe contei que eu era uma princesa. Melanie havia sido a amiga que eu havia pedido a Deus, e eu não estava dando valor a isso. E a imagem da nossa briga pelo jeito que eu estava agindo apenas para impressionar um cara surgiu. E, agora, estávamos as duas, com sorrisos nos rostos, enquanto nos arrumávamos para sair como os caras que nos faziam suspirar.
E logo, a imagem do povo de Florença me veio à cabeça. Lorenzo, Marta, Betty, John, Marcus, Gaspier, Monna e Lucio. Todos aqueles que haviam me ajudado quando eu morava em Florença e tinha que aguentar aquele bando de frescos.
De repente, tudo ficou preto outra vez. Antes que pudesse pensar em abrir os olhos, meu sangue começou a borbulhar dentro de minhas veias novamente, um grito mais alto saiu de minha garganta, fazendo com que meu corpo arqueasse no chão. A lembrança de meu pai, minha mãe e Lucy, juntos como uma família, apareceu diante de meus olhos como um filme. Desde o começo, quando éramos crianças e vivíamos todos juntos no palácio, e eu e Lucy ficávamos correndo pelo gramado enquanto mamãe e papai estavam encostados em uma árvore com sorrisos nos rosto. Até quando mamãe teve que ir embora com Lucy, sem nem ao menos dizer adeus. Eu me lembro que, naquele dia, eu senti todo o meu corpo doer e o sangue em minhas veias ferverem como uma chaleira a ponto de explodir. Naquele dia, eu senti lágrimas caírem de meus olhos, enquanto meu pai me segurava em seus braços e me levava para dentro do castelo, fazendo com que meu choro acabasse ao poucos. Mas, em vez disso, a imagem havia trocado outra vez, mostrando o dia em que minha mãe chorava em meus braços. Meu corpo arqueou mais uma vez, e eu pude sentir minhas mãos se contraírem em punhos fechados e começarem a bater no chão atrás de mim. A imagem de Lucy e eu tinha acabado de tomar conta da minha vista. Nós estávamos indo até um estúdio de tatuagens do amigo dela no seu aniversário de dezesseis anos. Flawless Curse, era o que as tatuagens diziam. Por um momento, estávamos as duas sorrindo e levando uma bronca de mamãe e papai pelo nosso ato não pensado. E a imagem foi trocada e nós estávamos naquele maldito castelo, brigando como duas gatas; rolando no chão e tentando salvar nossas próprias vidas. Subitamente, os olhos de Lucy se arregalaram, e eu pude sentir o sangue dela descer pela faca até chegar à minha mão, mas havia algo que eu tinha ignorado naquele dia, algo que ela tinha dito em seu último suspiro: Você sempre será minha irmã,Caroline.
O sangue em minhas veias percorria como um vulcão prestes a entrar em erupção. Minha pele formigava como se facas fossem cravadas lentamente em minha pele. Eu sentia que todo o meu corpo não aguentaria tanta pressão. Minha cabeça parecia estar a ponto de explodir e a única coisa que eu podia fazer era gritar enquanto eu me debatia no chão.
Eu estava sentindo outra vez. Não da melhor forma possível, ou da mais fácil, mas eu estava sentindo. O amor que meus pais me deram, uma família pequena, mas feliz assim mesmo. A amizade daqueles que deveriam ser inferiores a mim, uma melhor amiga que mudou todo o meu ponto de vista sobre como uma melhor amiga deveria ser. O amor de um garoto que, por mais errado e por mais proibido que fosse, não saía da minha cabeça e, muito menos, do meu coração. E por último, o arrependimento, a culpa e a saudade daquela que, por força do destino, nunca deveria ter nascido, mas que havia me ensinado a viver. Aquela que havia dado sua vida para eu viver.
E como começou, havia terminado. Meu corpo parou de se debater no chão, deixando para trás apenas minha respiração ofegante e o suor por toda a minha testa.
- Caroline, você está bem?
Abri os olhos e vi a imagem de Lorenzo. Sorri. Antes que eu pudesse pronunciar uma palavra, tudo estava preto outra vez.

Caroline. Caroline. Caroline.
Escutei alguém falar meu nome ao longe, como um sussurro. Apertei meus olhos e tentei me levantar, mas parecia que meu corpo inteiro estava pesado. Como se algo estivesse sobre mim. Eu estava cansada e nem sabia ao certo a razão. Eu apenas estava com muita vontade de ficar na cama o dia inteiro.
Senti um beliscão no meu braço e mais alguns sussurros de longe. E outro beliscão. Ainda assim, a cama ainda era mais confortável. Foi aí que veio outro beliscão e esse fez com que eu abrisse os olhos e me sentasse na cama soltando um grito.
- Mas que droga, quem foi o imbecil que fez isso? - olhei para o lado e vi Lorenzo sentado ao meu lado - Você tem problemas mentais? Você não pode sair por aí beliscando as pessoas enquanto elas dormem. - falei, olhando para ele, que sorria - Dá pra você parar de sorrir? Lorenzo, sério, você está com um olhar meio psicótico agora. Lorenzo. - estalei os dedos em frente ao seu rosto - Hello, alguém aí dentro? Lorenzo, dá pra você...
Não pude terminar a frase. Ele pulou em cima de mim e me sufocou em um abraço.
- Eu pensei que você tivesse morrido.
- Para estar morta, o coração tem que parar de bater. Meu coração parou de bater? - ele me segurou pelos ombros - Ou eu sou um espírito que veio te atormentar, Lorenzo? Vish, coitado de você. - ele sorriu.
- Graças a Deus, você está bem.
- E por que eu não estaria?
- Você dormiu por três dias. Chegamos até em pensar que você estava em uma espécie de coma, mas o médico disse que você estava bem e só estava dormindo.
- Eu dormi por três dias? Nossa, acho que bati meu recorde.
- Nós ficamos preocupados, chegamos até a...
A porta do alojamento se abriu em um estrondo, mostrando uma mulher com os olhos extremamente vermelhos, também conhecida como minha mãe. Fazia tanto tempo que eu não a via que estava quase me esquecendo como ela era. Mas, com certeza, ela estava mais linda do que nunca.
Levantei-me da cama e caminhei em sua direção a passos largos. Quando cheguei à sua frente, não resisti em abraçá-la pela cintura como se fosse sufocá-la.
- Meu bebê, eu fiquei tão preocupada. Eu não aguentaria perder você também.
- Não é para tanto. Eu estava apenas dormindo.
- Por três dias? - ela me segurou pelos ombros - Você nunca dormiu tanto.
- Eu também nunca me esforcei tanto.
- Eu disse para o seu pai que não deveria ter te mandado para esse lugar, mas ele não me escuta. - ela olhou para meu pai, que estava um pouco atrás.
- Está tudo bem, mãe.
- Não, não está. - meu pai se colocou ao lado dela - Te mandar para cá foi uma decisão imatura. Eu não estava pensando direito.
- Tudo bem, pai. Não tem problema.
- Você não pertence a esse lugar, minha filha. Você é uma princesa, não um soldado. E é por isso que nós vamos te levar para casa.
- O quê? - perguntei, afastando-me dos dois - Sei que vocês devem ter ficado muito preocupados comigo, mas eu não vou embora desse acampamento até que meu treinamento esteja completo.
- Você não precisa ficar aqui.
- Mas eu quero. Eu não vou simplesmente largar tudo do jeito que está. Esse acampamento realmente muda as pessoas, e eu estou precisando de mudanças. E, bem, não vejo lugar melhor para começar do que viver um pouco do que aqueles que me protegeram desde o dia em que souberam que minha mãe estava me carregando. O que eu quero dizer é que posso ter nascido com sangue real, mas isso não quer dizer que eu não possa ser um soldado também.
- Você tem certeza, filha?
- Claro que tenho.
- Bem, se é isso que você quer, então quem sou eu para dizer o contrário? - ele olhou para Lorenzo - Cuide bem da minha filha.
- Pode deixar, sua majestade.
- Antes de você ir, pai, será que você poderia enviar o dinheiro que a minha família iria receber por eu estar aqui para o irmão da Cassie? Digo, eu não preciso do dinheiro e, com certeza, acho que ele faria mais proveito dele do que eu. - falei, enquanto caminhava em direção ao banheiro - Além do mais, eu tirei o lugar dele de estar aqui e não vejo nada mais justo. E dá para vocês falarem com o cozinheiro para me fazer um daqueles sanduíches bem gordurosos? - perguntei, apoiando-me no batente - Acordei com uma fome de leão. Obrigada, até mais.
Entrei no banheiro e encarei meu reflexo no espelho. É, eu realmente tinha mudado.

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