29. Ponto Cego

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— Tá linda, meu amor! — disse tia Margarida, ajustando o meu coque.

— O quê? Não, tia, não aperta... — Comecei a dar risada, afastando a mão dela. — É um coque frouxo.

— Ah, desculpe! — falou, escondendo o sorriso com a mão. — Pensei que tivesse se soltando.

— Chegue mais perto, minha filha — pediu minha mãe e eu me aproximei, abaixando para ficar na altura dela, que estava sentada no sofá. — Tu tá de maquiagem, é, Lis?

— Tô sim, mainha.

— Mas isso é maquiagem demais. Uma moça decente...

— Mainha! — interrompi.

— Deixa a garota, Rosa!

— Eu ia dizer que a gente, principalmente que é mãe, deve se portar com ordem e decência.

— Então alguém aqui não tinha nem ordem e nem decência na juventude, né? — provocou minha tia. — Porque eu era criança, mas me lembro muito bem de você se enchendo de pó e batom na frente do espelho.

— Margarida, a gente não conta os pecados pros jovens, não, senão eles vão querer repetir.

— A gente não conta porque na nossa época tinha safadeza também.

— Margarida!

— Tô mentindo, Rosa? Pensa direitinho! Cada época tem sua safadeza. Você era tão santinha...

— Parou com essa conversa? — reclamou minha mãe. — Me desmentindo na frente da menina.

— Gente, eu já vou, viu? Tia, Flor já tá dormindo. Aproveite pra relaxar um pouquinho também.

— Pode deixar, meu amor. Divirta-se! Transe até ficar assada.

— Margarida!

— Ah, Rosa! Tu nem transa nem deixa os outros transarem. Lis nasceu como? Do Espírito Santo, foi? — completou, rindo.

Peguei minha bolsa — a mala de sempre — e o sobretudo para pôr por cima do meu vestido tomara que caia verde. Ainda estava frio em São Paulo, mas Suzy me garantiu que na boate que iríamos tinha chapelaria para que eu pudesse guardar minhas coisas.

O ponto de ônibus não estava vazio e dei graças por isso. Não queria gastar com táxi, pois já tinha gasto com o ingresso da balada. Desde que tive Flor, deixei um pouco de lado minha vida de festas. Passei a separar o dinheiro para os gastos do mês, tinha até uma planilha, e foi depois que me tornei mãe que passei a sair com uma bolsa imensa, carregando tudo o que julgava necessário.

Nessa noite em especial, eu queria me soltar, queria esquecer da existência de Pierre, esquecer que Fábio voltou para minha vida — como ele mesmo dizia — da casa do caralho, esquecer por poucas horas que era mãe e que tinha uma casa para administrar, que estavam chamando minha filha de doida e que Laura trabalhava comigo. Nessa noite, eu queria ser uma adolescente desregrada.

A rua do endereço da balada era muito movimentada. Tanto pelo fluxo de carros quanto de pessoas de todos os tipos: skatistas, roqueiros, clubber's, emo's... Eu amava aquela diversidade, ria como uma tola e devia estar parecendo uma boba mesmo, porque foi nesse momento que fui puxada pelo braço.

Soltei um grito com o susto e ajustei minha bolsa, que quase caiu com o solavanco. Olhei para cima e vi o sujeito que me puxou. Um homem de cabelos escuros, barba espessa e uma expressão nem um pouco amigável. Imediatamente, comecei a me preparar para o assalto, mas o desgraçado me puxou para si.

Soltei outro grito, sentindo as mãos passearem por cima do sobretudo pela minha cintura e meus quadris, descendo até as minhas coxas.

— Me solta! Tais doido, é? — reclamei, o empurrando para longe.

Abriu um sorriso nada simpático, olhei ao redor e vi que ele tinha me puxado para um ponto cego, fora da vista dos demais, e o medo tomou conta de mim.

— Vem cá, princesa. — O hálito de álcool subiu quando ele abriu aquela boca asquerosa e fez um biquinho, esperando um beijo.

— Tira a mão de mim, nojento dos infernos!

— A baiana é brava. Assim que eu gosto!

O riso assustador foi substituído por um semblante de desafio e ele cresceu diante de mim, aproveitando toda a sua altura. Aproximou os lábios do meu pescoço e eu ouvi uma voz por trás de mim.

— Deixa a garota em paz...

Aproveitei o momento da distração.

— Eu... — falei, desferindo um soco contra seu rosto — sou... — continuei, acertando um segundo soco em seu rosto — pernambucana! — Dei uma cotovelada em seu estômago, fazendo-o perder o ar. — E não como calango com farinha.

— Orra meu!

O estranho segurou o estômago com as duas mãos. Furioso, veio com tudo para cima de mim.

— Ah, sua!...

Antes mesmo que eu reagisse, Ulisses estava diante de mim, empurrando o homem para longe.

— Nem pense em tocar um dedo nela!

O estranho foi para cima do meu amigo e eu reagi chutando a região do meio das pernas e lançando minha a bolsa contra seu rosto. Ele caiu de joelhos, grunhindo de dor.

— Ô lôco! — exclamou Ulisses mais uma vez. — Esse nunca mais diz pra uma nordestina que ela come calango com farinha.

— O que tá acontecendo aqui? — Ouvimos uma voz grave e nos viramos, era um policial.

— Esse cara aqui tava tentando mexer com a moça e se deu mal. A moça é mais forte que um lutador de boxe.

— Moça...? — chamou o policial, esperando uma explicação da minha parte.

— Ele me agarrou e me puxou pra esse cantinho aí.

O policial foi até o homem e o puxou pelo braço, arrastando-o dali e levando até a viatura próxima. Buscando ar em seus pulmões, o indivíduo enfiou a cabeça para fora da janela e berrou:

— Eu não posso ter apanhado de uma mulher!

Ulisses cruzou os braços sobre o peito e deu soquinhos nos ombros, gritando de volta com a voz mais grave:

— Wakanda forever!!!

Eu repeti o gesto com os braços e gritei também com a voz mais grave:

— Wakanda forever!

Enquanto ríamos, Ulisses passou um braço sobre meus ombros e eu, em volta da sua cintura.

— Como é que tu me achasse?

— Eu tava saindo do carro quando te vi chegando, de repente a parede te engoliu, então vim ver o que era. Você veio como?

— De ônibus.

— Não seria melhor pegar um metrô?

— Menino, pra andar no metrô daqui, a pessoa tem que fazer um curso profissionalizante antes — respondi, acompanhando seus passos em direção à boate. — Brigada por me salvar.

— Cê tá me tirando, né? Não tá óbvio que eu que fui salvo?

— Não quis me amostrar — falei, rindo.

— Quem te ensinou a bater assim?

— A vida — respondi, gargalhando. — Chega uma hora que a gente aprende a bater de volta.

— Você não cansa de me surpreender — falou, me olhando com admiração.

— Admite: tu com certeza não vive mais sem mim.

Fé, Lis! Um Romance Quase ClichêOnde histórias criam vida. Descubra agora