Depois de deixarmos Flor em casa, eu ainda não havia digerido a conversa com o pai de Jéssica, mas aos poucos, enquanto Ulisses e eu nos dirigíamos ao trabalho, íamos comentando os acontecimentos do dia, lembrando de várias outras coisas que havíamos passado juntos e acabamos nos divertindo muito.
— Eu nunca achei que um dia eu ia ter um chefe tão atabacado feito tu — provoquei. — Ainda mais aqui em São Paulo.
— E nem se acostume, viu? Você deu sorte de me ter como chefe.
— Pois é. Também nunca achei que ia ter um chefe tão amostrado.
— Mas eu devo admitir que você também é excepcional.
— Por quê? — perguntei.
— Além da pessoa guerreira que você é, sendo mulher, mãe solteira, cuidando também da própria mãe, vinda lá das praias do Nordeste pra essa selva de pedras... Enfim, muita coisa...
— Mas também tem várias pessoas lá na SB Koffee e fora de lá cada um tem suas batalhas e histórias pra contar...
— É, mas eu ainda não tinha conseguido me conectar com os outros do mesmo jeito.
— Nem com Suzy?
— Então... Suzy e eu já nos dávamos muito bem, mas a gente não era tão próximo. Na verdade, a gente passou a ser depois que você chegou. E, pensando bem, eu mesmo também tô me sentindo mais à vontade entre vocês depois da sua chegada.
— É mesmo? E como é que logo tu, que é o chefe, não vai te sentir à vontade entre teus funcionários?
— Não sei. Acho que além da síndrome do impostor, os próprios colaboradores não devem se sentir tão à vontade com o gerente quanto entre eles mesmos. É diferente... Você é uma das únicas pessoas que sempre me tratou de igual pra igual desde o começo.
— Ih... Tá me babando demais pro meu gosto. Se for pra me demitir, demita logo, viu? Mas fique sabendo que eu vou fazer o maior escândalo até ser expulsa de lá — brinquei.
— Não, mas é sério, eu queria que você soubesse que você é muito especial.
Por alguma razão, fiquei um pouco tímida nesse momento.
— Brigada. Tu também é muito legal.
Um pequeno silêncio constrangedor tomou conta do ambiente.
— Mas como eu disse, não se acostume, não, viu?
— Ulisses... Faz tempo que eu queria conversar um negócio contigo.
— Diga — falou, desconfiado.
— Esse negócio entre tu e Laura, tu acha que é sério mesmo?
— Vê só... A gente tá quase chegando... Você acha que a gente poderia conversar melhor sobre isso depois que a gente largasse?
— Tá bom.
Chegando lá, Ulisses e eu já não falávamos nada um com o outro, mas compartilhávamos um sorriso de cumplicidade que falava tudo por nós. Com um sorriso largo, ele abriu a porta para que eu entrasse, sorri para ele em agradecimento e demos de cara com Pierre.
— Podemos conversar?
No mesmo instante, Ulisses se retirou, deixando-nos a sós.
— Não tenho nada pra conversar contigo — respondi franzindo os lábios.
— Prometo que essa é a última vez — insistiu. — Depois disso, eu garanto que nunca mais vou atrás de você.
Eu o encarei procurando verdade em seus olhos e eles estavam cheios de olheiras. Foi quando reparei melhor e percebi que sua barba estava ainda maior e ele estava ainda mais magro. Fiz que sim com a cabeça e fui novamente para o estacionamento, sendo seguida por ele.
Quando estávamos a uma certa distância, virei-me para ele de braços cruzados e esperei que falasse.
— Em primeiro lugar, quero pedir perdão por tudo. A última coisa que eu queria fazer nessa vida seria magoar você.
— Pois magoou e muito. Magoasse ainda mais na última conversa quando tu não queria nem dizer o motivo do teu sumiço. Não quero nada com um cara que esconde as coisas de mim. Eu saí de um relacionamento assim com o pai da minha filha e não quero outro.
— Por favor, me perdoe. Eu queria poder apagar todo o seu sofrimento.
— E agora o que é que tu tem pra dizer?
— Lis... Não tem uma maneira fácil de eu dizer isso... Mas eu...
— Começou a gagueira, meu filho?
— Eu tenho...
— Eu sabia! — afirmei.
— Sabia?
— Sim, eu sempre desconfiei que tu tinha mulher e filhos por aí.
— Não, Lis. Você é a única pessoa que eu tenho na minha vida.
— E tu ainda fez o que fez comigo?
— O que eu tô querendo dizer, Lis... É que eu tenho...
— Tem o quê? Desembucha de uma vez!
— Lis, eu tenho depressão.
— É o quê? Depressão?
— Sim. Esses dias que passei sumido, estava depressivo. Me perdoe por tê-la deixado em dúvida sobre como eu estava ou sobre os meus sentimentos para com você. Eu realmente gosto de você, muito! Mas quando... Quando ela surge, eu perco o controle sobre a minha vida. Quando eu saí com você, aqueles dias me fizeram tão bem, mas ao mesmo tempo me trouxeram tantas lembranças sobre o passado, que acho que isso contribuiu para que ela viesse de novo.
— Depressão? Eu aqui preocupada, achando que podia ser uma coisa séria.
— Me desculpe, mas eu acho que você não sabe o que está dizendo.
— Eu não sei o que tô dizendo? Ah, Pierre, vai te lascar! Tu sabe o que é ser mãe solteira, preta, pobre, ter que cuidar da mãe doente, sair da própria terra pra ser humilhada num lugar que todo mundo trata você diferente, ainda ser seguida pelo ex, que depois de ter traído você, agora tá querendo tirar sua filha de você? Ralar num trabalho braçal, sem uma faculdade, sem uma profissão, ganhando pouco pra pagar as contas da casa? Uma psicóloga querendo dizer que sua filha tá doida, as crianças da escola não poderem brincar com a sua filha? Ser perseguida no trabalho por uma pessoa que não vale o que o gato enterra? É tanta coisa que eu podia passar o dia todinho aqui e a lista não iria acabar, mas me diga uma coisa, Pierre, tu sabe o que é qualquer uma dessas coisas?
— Não — respondeu, de cabeça baixa.
— Agora vem tu... Homem, branco, rico, bonito, estudado, não sabe nem o que é um boleto pra vencer... e tá aí... me dizendo que sumiu porque tá com depressão?
— Você já procurou saber o que é depressão? — indagou.
— Tenho tempo pra isso não, meu filho. O que eu sei é que eu tenho que ralar e não posso me dar ao luxo de parar a vida por causa de depressão, não. Quando eu tenho um problema, eu bato de frente. Coisa que pelo visto tu não sabe fazer.
— Bem... Já que, pelo visto, não tem mais o que eu dizer... Só desejo que você seja feliz e tenha muito sucesso na sua vida.
— Tá bom, pode deixar.
Foi assim que, de cabeça baixa, Pierre foi embora.
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Fé, Lis! Um Romance Quase Clichê
Romance🥇Vencedor em 1° Lugar no Concurso Retro Future na Categoria Comédia 🥈Vencedor em 2° Lugar no Concurso Setealém na Categoria Comédia 🥉 Vencedor em 3° Lugar no Concurso Big Bang na Categoria Romance 🥉Vencedor em 3° Lugar no Concurso Bevelstoke...