Pierre nos deixou em casa depois que liguei para os pais da Jéssica. Percebi pelo tom de voz da mãe que ela não parecia nem um pouco satisfeita pela surra que a filha levou. "Minha filha tá com olho roxo, nisso que dá deixar gente civilizada junto com todo tipo de gente" ela disse, e eu senti vontade de entrar no telefone e quebrar a cara daquela mulher, mas como Flor bateu na outra criança, me segurei e, com muita educação, sugeri que seria importante as meninas conversarem e se desculparem uma com a outra. Ela afirmou que concordava, porém o seu tom de voz não passava a mesma emoção.
Flor estava mais calma depois de ganhar de Pierre algumas folhas em branco e várias canetinhas coloridas, isso a distraiu durante todo o caminho de volta para casa. Graças a Deus, as crianças esquecem rápido, diferente dos adultos. Eu, por exemplo, não conseguia esquecer a frase dita pela professora: "Mãe, que tal marcar pra Flor uma consulta com a psicóloga?".
Eu senti meu sangue ferver e fingi não ouvir aquilo que eu considerava um insulto, mas ela completou com: "A psicóloga daqui da escola trabalha com ludoterapia, as crianças adoram, porque nessa abordagem tem brinquedos, joguinhos e a criança acaba se divertindo muito". Sem dar resposta à professora, eu me virei de costas e segui para o carro. Eu tinha certeza de que minha filha não era louca para se consultar com psicólogo.
Quando chegamos em casa, Flor saltou do carro e colocou as mãozinhas sobre a janela de Pierre para devolver as canetinhas.
— Brigada, titio!
— De nada, Flor — disse Pierre, com um sorriso.
— Tu é namorado da minha mãe?
Pierre ficou vermelho como um tomate e segurou o volante com força, balbuciando alguma coisa que não entendi. Resolvi socorrê-lo.
— Ele não é meu namorado, é um... — Olhei para ele buscando aprovação, afinal, ele não era bem meu amigo.
— Um amigo de sua mãe — completou, mais tranquilo.
— E por que não namora? Tem medo de beijar na boca? É nojento, né? Eu também acho!
— Maria Flor! — reclamei.
Pierre começou a rir e eu contive minha própria vontade de rir. Estava entre a vergonha e o humor.
— Oxe! E né, não? Gente grande gosta de coisa nojenta!
— Tipo o quê? — perguntou Pierre, ainda rindo.
— Beijo na boca. Comer salada. Tomar remédio. Assistir filmes de pessoas brincando de esconde-esconde na cama...
— Flor! — reclamei de novo.
— Que foi? A tia Margarida gosta!
— Maria Flor!
Fiz uma nota mental para alertar minha tia sobre o que assistia e que Flor era muito curiosa.
— O que eu tô fazendo, meu Deuzinho? — perguntou ela, pondo as mãozinhas na cabeça.
Pierre ria como nunca vi. Era uma risada baixa, contida, mas igualmente gostosa como qualquer outra.
— Ah!... E qual seu nome, titio?
— Pierre...
— Piii-eeee-eeeee! Piiiii... Pipi! — Ela começou a rir. — Vou te chamar de tio Pipi.
— Pipi? — ele repetiu, de queixo caído.
— Maria Flor!!!
— Tio Pipi, tio Pipi, tio Pipi... — cantarolava em meio às risadas.
Pierre voltou a rir. Ainda bem que ele não levava para o pessoal, pois Flor tinha o péssimo hábito — talvez a maioria das crianças o tenha — de falar tudo o que vinha à cabeça.
— Então, tio Pipi. Tu vai convidar mainha pra jantar? Como nos filmes? Comer ovo de peixe? Outra coisa nojenta que gente grande faz é comer ovo de peixe!
— Flor, me espera lá dentro de casa — sugeri.
— Eu não. Tô ajudando minha mainha. Sabia que mainha nunca mais beijou na boca? — comentou, pulando para ver Pierre pela janela do motorista.
— Deixe de conversar besteira, Maria Flor!
— É verdade verdadeira! Juro de dedinho! Tu devia chamar mainha pra jantar em um restaurante sem ovo de peixe e com parquinho pra mim brincar e deixar vocês beijar.
— Pra eu brincar — corrigi —, e que história é essa de ovo de peixe, Maria Flor?
— Eu acho que ela está se referindo a caviar — disse Pierre.
— É! Ecaaa!...
— Caviar é ovo de peixe, é? — perguntei.
— Sim, é à base de ovas de peixe — explicou ele.
Torci o nariz. Eu nunca comi caviar, só tinha ouvido falar, como diz o cantor Zeca Pagodinho. Flor olhou para mim e deu uma gargalhada, apontando na minha direção.
— Tu também achou nojento! Viu? É eca!!!
Pierre olhava de mim para Flor, encantado. Sempre fomos muito parecidas. A pele negra, os crespos volumosos, os lábios grossos e os olhos grandes. Costumávamos chamar a atenção das pessoas na rua por nossa semelhança ou talvez pela língua solta de Flor.
— Tu tem que levar ela pra ver a lua... E beijar ela... E fingir que salva ela do dragão. Igual os príncipes dos filmes. Mas é tudo de mentirinha, porque dragão não existe e príncipe encantado também não. O que existe é macho escoto!
— O quê? — ele perguntou, quase roxo de tanto rir.
— Foi o que eu ouvi minha tia Margarida dizer à minha vó Rosa, que os príncipes na verdade, de verdade verdadeira, são tudo safado!...
— Maria Flor Silva Lima!!! — Pus as mãos nos quadris e ela, as mãozinhas na boca. — Desculpe por isso e obrigada por tudo — falei para Pierre.
— Quando tu vem buscar mainha pra comer cavicá? — ela continuou.
— Sábado à noite? — perguntou Pierre, olhando para o volante, um pouco sem graça.
— O quê...?
— Ela não pode! — me interrompeu Flor. — Ela só pode domingo porque ela folga. A minha vó vai brigar com ela, porque domingo é dia de ir pra casa do Senhor, mas aí a minha tia vai dizer que o Senhor já tá na casa da gente...
— Flor, sente ali, vá. — Apontei a calçada pra ela.
— Domingo à noite? — perguntou Pierre.
Olhei para ele de olhos arregalados e completamente sem graça.
— Combinado — respondeu Flor. — E lembre de eu! Com parquinho!
— Anotado — disse Pierre.
— Tu vai tá é dormindo — falei para Flor.
— Oxe, mainha!
— Te busco às oito da noite? — continuou Pierre.
— Tudo bem — respondi, olhando para o chão.
Flor levantou os bracinhos e começou a girar em uma dança infantil.
— Mainha tá namorando... Mainha tá namorando... Mainha tá namorando...
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Fé, Lis! Um Romance Quase Clichê
Romansa🥇Vencedor em 1° Lugar no Concurso Retro Future na Categoria Comédia 🥈Vencedor em 2° Lugar no Concurso Setealém na Categoria Comédia 🥉 Vencedor em 3° Lugar no Concurso Big Bang na Categoria Romance 🥉Vencedor em 3° Lugar no Concurso Bevelstoke...