32. Biscoito ou Bolacha

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Eu colocava o lanche de Flor em sua bolsa quando ouvi a primeira buzinada.

— Mainha, eu não quero lanchar doce de goiaba com bolacha de novo, não.

— Menina, tu dê graças a Deus por ter um docinho com bolacha pra tu comer.

— Não, mainha! Eu quero salgadinho. — Ela baixou o tom de voz para não ser ouvida pela tia e pela avó, que eram as responsáveis pelo lanche. — Eu fico com vergonha! As outras crianças comem biscoito recheado, salgadinho e eu cream cracker com doce. Sim, mainha... Tu sabia que eles chamam biscoito de bolacha?

— Que conversa é essa, Flor?

— Pois é, eu já expliquei pra eles que, quando é doce, é biscoito e, quando é salgado, é bolacha. Mas eles não aprendem!

— Minha filha... Entenda uma coisa... Uns vão chamar de biscoito, outros vão chamar de bolacha, mas isso não quer dizer que um tá errado e o outro tá certo, não.

— Não? — perguntou Flor. — Mas eu ouvi a minha vida todinha que cream cracker é bolacha e, quando é de chocolate ou morango, é biscoito.

Mostrei a embalagem de cream cracker e pedi para que ela lesse onde eu estava apontando.

— Bis... Coi... To! Oxente, mainha, biscoito? E por que é que lá em Recife a gente sempre chama de bolacha?

— Então, minha filha, isso se chama diferença cultural — expliquei. — Tu chamar biscoito ou bolacha só vai mostrar como tu aprendeu, o que tu não pode é achar que alguém tá errado só porque é de uma cultura diferente da sua e nem ficar mangando de quem é diferente, porque se a brincadeira fizer alguém ficar triste, então não é brincadeira. Sabia que no Brasil antes só tinha índio?

— E é, mainha? E cadê eles então?

— Um povo de fora chegou dizendo que tudo que eles tavam fazendo era errado e agora tem bem pouquinho índio pra contar história.

— Ô mainha, a gente é índio?

BI-BIII... O som daquela buzina interrompeu o nosso diálogo.

Olhei para o relógio na parede, eram seis da manhã. Eu tinha que correr, a aula de Flor começava às sete e eu tinha que estar no trabalho às oito. Como fazer isso com o trânsito de São Paulo, eu não tinha a menor...

BI-BIII... BI-BIII...

O ódio tomou conta de mim. Enfiei a cabeça na janela do apartamento, enchendo os pulmões de ar.

— Vai tirar o pai da forca, é, miséria? Tem criança pequena e gente idosa aqui, rapaz... Ulisses?

— Nossa!... Que boquinha suja — disse ele, rindo. — Vamo! Tá pensando que o trânsito de São Paulo é moleza?

— Tio Lilica!!! — gritou Flor, descendo as escadas.

Peguei minha bolsa e a de Flor e a segui, dando um tchau apressado para minha tia e minha mãe.

— Eu gosto desse rapaz — ouvi minha tia dizendo.

— Ele é um homem de Deus? — perguntou minha mãe.

— Pra mim, Rosa, qualquer pessoa que trabalhe, seja honesta e procure fazer o que é certo é de Deus. E se de quebra carregar uma moça bêbada até o quarto com o cuidado que ele tinha, aí o céu tá garantido.

— Bêba? — perguntou minha mãe e eu apressei os passos para não levar bronca.

Flor estava dando beijos na cabeça de Ulisses quando parei de frente para o carro.

— Como você tá, Florzinha Rambeau?

— Eu tava com saudade, tio Lilica. O que é isso no teu olho? Tu caiu, foi?

— Foi — respondeu ele, recebendo beijos de Flor para curar o machucado.

— Flor, isso lá é pergunta que se faça? — reclamei e virei-me para Ulisses. — O que tu tais fazendo aqui essa hora da manhã e atormentando a vizinhança?

— Vim buscar você. Na noite da bala... — Ele se interrompeu, olhando para Flor.

— Da balada! — ela completou, rindo. — Que mainha chegou bêba!

— Flor! Eu não cheguei isso aí, não...

— Chegou, sim! Tia Margarida deu pra tu uma canecona de café, dizendo que era bom pra saca.

— Bem... — retomou Ulisses, prendendo o riso. — Você disse que foi de ônibus e disse que ia voltar de ônibus quando estava bê... — Olhou para Flor de novo.

— Bêba!!! — ela completou de novo.

— Mas não precisa se preocupar — interrompi.

— Eu já iria de carro de qualquer jeito, é bom que vocês me fazem companhia.

— Eba!!!

— E Laura o que vai achar disso? — perguntei.

— Ela tem nada que achar, não, ela vai no carro dela.

— É, tio! O namorado tem que levar a namorada pro trabalho — disse Flor. — Ou então, se a namorada tiver carro, ela leva o namorado pro trabalho. Minha mãe sempre fala que direitos são iguais!

— Flor, quantas vezes tenho que dizer que Ulisses não é meu namorado? — falei, abrindo a porta do carro para ela, que logo se ajustou na cadeirinha infantil. — Tu comprou uma cadeirinha? — perguntei a Ulisses.

— Não. É do meu sobrinho, só pus aí — respondeu, sentando no lado do motorista. — Imaginei que você fosse levar sua filha na escola.

Entrei no carro, me sentindo um pouco constrangida com a preocupação dele, mas ao mesmo tempo grata, porque se ele fosse mesmo me levar, além de economizar passagem e ser mais confortável, eu chegaria mais rápido.

No meio do caminho, não pude me segurar e tive que perguntar a ele:

— Ulisses, pode me explicar o que foi que aconteceu ontem?

— Tem certeza que esse é o melhor momento?

— Então só me responde uma coisa, por favor.

— O quê?

— Como é que aquele negócio chegou junto comigo?

— Que negócio?

— Aquele negócio... — falei, gesticulando e articulando bastante a minha voz. — Aquele negócio... Tá entendendo?

— Não tô, não, Lis. Que negócio?

— Aquele negócio azul transparente... Sabe agora?

— Desculpa, mas ainda não sei do que você tá falando.

— Ah! Ela tá falando da calcinha azul, tio Lilica! — explicou Flor.

Fé, Lis! Um Romance Quase ClichêOnde histórias criam vida. Descubra agora