Abbe não gostava do seu nome. Lembrava-se disso sempre que tinha que escrevê-lo. E parece que o acaso profanou Dancing Queen nas caixinhas de som só para lembrá-la disso.
Sim, havia sim uma possibilidade...
Depois de anelar sua revolta, preencheu seu nome no formulário de emprego. Anotou os demais dados em letras versais. Alongou-se. Passou os olhos sobre a parede tipo papel envelhecido da cafeteria, que ficava exatamente em frente ao escritório para cuja vaga estava se candidatando, na Regent Street.
Ela nunca se interessou pelo ramo jurídico. Nunca nem sequer cogitou enfiar-se nesse caos, mas, de repente, lhe pareceu a mão do destino salvando-a da monotonia de Londres.
Na verdade, sua vida profissional estava em aberto há algum tempo, e nem vinha ao caso naquele momento. Apenas precisava urgentemente de algo realmente útil para fazer. Não suportava mais zanzar pela cidade sem um propósito decente. Odiava museus e atividades recreativas. Mas foi o que fizera o tempo todo, há exatos 31 dias.
O intercâmbio na Inglaterra estava previsto para durar um ano. Um tempo curto demais, ela chegou a pensar, quando seu pai lhe deu a notícia. Mas 31 dias de extremo tédio foram suficientes para mudar sua perspectiva. Se não conseguisse o emprego, voltaria para o Brasil em um ou dois meses. Já tinha planejado tudo. E já estava se preparando para conversar com seu pai sobre isso.
Estava pensando nas palavras que diria a ele quando o celular o vibrou em cima da mesa. No mesmo instante, o garçom surgiu com a caneca de cappuccino. Ela atendeu, enquanto agradecia o rapaz com uma acenada. Decepcionou-se um pouco quando viu o rosto fino e pálido da colega de apartamento na tela. Não que não gostasse de Fabíola e suas teorias sobre os reflexos da low carb na longevidade, ou de sua fixação pela forma esquelética das modelos da Victória's Secret, mas esperava muito que fosse uma ligação do seu pai. Precisava falar sobre a possibilidade de reformulação dos planos de intercâmbio. Mas não conseguia contatá-lo diretamente há mais de um mês.
Roger era um homem ocupado com o trabalho. Inglês nato. O tipo desligado da família, bem pouco emocional. Mudou-se para o Brasil depois dos 40 anos de idade, simplesmente porque o país lhe trazia boas memórias do seu falecido pai brasileiro. Mas nos últimos meses, boa parte dos seus compromissos era na Inglaterra. O que não significava que pai e filha estivessem mais próximos por causa disso. Definitivamente não.
Apesar de acostumada com os sumiços dele, nunca conseguiu "engolir" a intermediação que a babá fazia entre eles, uma burocracia bem estranha numa relação parental. Geralmente era a Srª Gebitte quem ligava para dar recados do pai, e sempre terminava as ligações diárias com a pergunta: Quer que eu diga algo a ele?
Abbe tentou disfarçar a decepção. Não queria quebrar a excitação do rosto da amiga, que brilhava por causa da curta viagem à Alemanha. Estava feliz por ela, mas subitamente repeliu a ideia de ficar sozinha. Talvez a aversão à solidão fosse a principal razão por ter lutado tanto pelo intercâmbio. Era muito dependente e apegada à governanta (que ainda tinha o hábito de chamar de babá), e que muito raramente a "deixava sozinha para crescer". Estava cansada de ouvir Roger buzinar isso em sua cabeça.
As alucinações de Abbe sempre foram a maior preocupação da Srª Gebitte, o que certamente poderia servir de explicação para seu exagerado senso de proteção. Ligava todos os dias para cumprir um questionário bem longo sobre remédios e alimentação. E por falar em remédio, já estava na hora de voltar para o apartamento. Esquecera os comprimidos em cima da mesa.
Guardou o celular. Voltou a acenar para o garçom e pediu a conta. Anexou cuidadosamente a ficha de papel na pasta de couro, enquanto pensava sobre o curioso fato de um grande escritório de advocacia ser ainda tão adepto a papel. E no instante seguinte, seus olhos pousaram no relógio analógico de silicone nos próprios pulsos, que era igualmente tão bizarramente paradoxal à evolução tecnológica quanto o papel que acabara de preencher.
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Canção para o Anjo I (COMPLETO)
RomanceO intercâmbio na Inglaterra era para ser um ensaio de liberdade para Abbe, uma jovem de 21 anos, que vivia sob a sombra da psicose desde a infância. Ela tinha uma forte expectativa de que fosse o primeiro passo rumo a uma vida normal. Mas alguns di...