CAPÍTULO 22

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Uma  borboleta pousou no ombro de Holly. Já era a segunda que fazia isso naquele fim de tarde, desde que chegaram ao jardim. Mas Holly não notou. Estava concentrada nas peças do tabuleiro sobre a pequena mesa de concreto, embaixo de uma árvore ornamental.

Abbe estava ensinando Holly a jogar Xadrez. Mas o interesse repentino da mulher em aprendê-lo lhe soou bem suspeito. Primeiro porque Holly sempre viveu numa casa repleta de tabuleiros e sequer sabia o nome das peças.  Segundo porque, desde cedo, Holly comportou-se de um jeito bem teatral, arrastando a moça para fora do quarto, dizendo que ela deveria dar uma chance ao sol, ao menos no dia do seu próprio aniversário. Tudo indicava que se tratava de um pretexto para arrancá-la lá de dentro. Então, pelo jeito, o castigou finalmente chegou ao fim, depois de trinta e seis dias, Abbe calculou naquele momento.

Sim, trinta e seis dias. Trinta e seis dias em que Abbe só tivera contato com Holly, que embora  passasse boa parte do tempo no quarto, falava apenas o básico. A cabeça de mulher  vivia baixa e ela se esforçava bastante para que sua presença fosse discreta. A energia em torno do corpo dela era estupidamente escura, certamente um acessório da punição estabelecida por Richard. 

O problema é que, com os dias profundamente silenciosos, a moça se desacostumara a falar. Até aquele momento do dia, abriu a boca apenas para descrever o nome das peças e suas funções no jogo. Para os demais assuntos, suas manifestações eram secas e curtas.

Mas além do vício no silêncio, algo mais havia mudado dentro dela, mais especificamente morrido. 

Depois que desabafou com Richard no escritório de Andigus, uma coisa se tornara muito clara para Abbe: nada nesse mundo poderia mudar sua situação de miséria. Nada de planos. Nada de estudos ou maquinações. Nada. Nada além do peso da realidade em seu espírito. E a realidade o amortecera de um jeito provavelmente irreversível. Nesses trinte e seis dias, Abbe experimentara o conceito mais puro da indiferença. Havia se tornado o equivalente a uma das almofadas jogadas no centro da cama. Mas o vazio da alma era uma grande conquista, olhando pela perspectiva de que a falta de sentimento era um terreno infértil para o sofrimento. Ela não estava sofrendo. Não estava sofrendo porque não estava viva por dentro.

Por tudo isso, a maioria das coisas que saía de boca Holly naquela tarde era como um confortável ruído branco, exceto pela última coisa que dissera, minutos atrás, um comentário despretensioso, algo relacionado a um delicioso bolo de queijo que Richard trouxera à mansão na noite passada. Abbe não ouvia o nome dele e de nenhum outro Aspen desde a noite em que fora pega em flagrante. Acontece que o timbre tranquilo e brincalhão de Holly dava a entender que ela desconhecia as razões por trás do castigo. Se soubesse de todos os detalhes, certamente não mencionaria o maldito demônio com tanta naturalidade.

_ Isla está preparando uma deliciosa torta de atum e um maravilhoso bolo de frutas vermelhas, suas especialidades. Vai ficar pronto às 17h. Daqui 15 minutos _ Holly disse excitada, mostrando o relógio para Abbe, depois de jogar a rainha para cima do peão. _ O tempo passou tão rápido que só agora me lembrei do nosso piquenique. Daqui a pouco vou buscá-los. 

Enquanto Holly falava, Abbe via a testa de Gustav surgindo, subindo as escadas, na lateral do jardim. A lembrança da humilhante noite do noivado ameaçou desabar em sua cabeça. Sua cara certamente estaria em brasas se tivesse um coração batendo naquele momento. Por isso, achou por bem fingir que estava concentrada no jogo. Talvez ele nem as visse. Ignorou-o. Continuou o jogo. Tomou uma das torres de Holly. A mulher resmungou, como se o peão de Abbe tivesse caído de paraquedas em cima dela.

_ Como isso aconteceu? _ Holly perguntou a si mesma, pensando, roçando os dedo atrás da orelha.

_ Você deveria ter avançado com seu cavalo no meu peão.

Canção para o Anjo I (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora