CAPÍTULO 30

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O ar fresco do parque fundiu-se com o cheiro de café. Uma mistura tão agradável como aquele dia de sol.

_ 8,78% de aumento nos lucros? _ Ela questionou, pasma, protegendo com o cardápio o rosto do filete de sol que acabara de atravessar a janela.   _ Nossa! Está fazendo um excelente trabalho, Sr. Diacomo!

_Eu lido apenas com os números _ O homem disse, mexendo o café calmamente. _ A senhorita é que está nos bastidores de tudo, fazendo-os crescer. Eu apenas lhe mostro os resultados de uma boa gestão.

_ Não é bem assim, Sr. Diacomo. Se não fossem suas orientações fiscais, eu ainda estaria completamente perdida.

_ A complexidade fiscal desse país, por mais que seja difícil de acreditar, não é o maior obstáculo para o sucesso empresarial. A falta de capacidade de lidar com os recursos humanos, sim.

Eles riram.

_ As "Geleias Gebitte" estão em excelentes mãos _ Ele prossegui, depois de bicar o café espresso.  _ E pensar que há três anos o setor jurídico da empresa chegou a pensar em acionar a justiça para tentar uma recuperação da empresa.

_ Infelizmente, isso não está totalmente fora de questão. Tudo vai depender do andamento das vendas de fim de ano. Precisamos bater as metas.

E é claro que correrão bem, ela pensou, olhando novamente para o relatório contábil nas mãos, enrugando os lábios para evitar mais um sorriso. Não queria parecer altiva demais para o contador. Mas a verdade é que ela estava fazendo um excelente trabalho. Ela sabia. E isso gritava em seu rosto. Mas também sabia que nada daquilo seria possível sem a confiança da família Gebitte.

Quando a "babá" sugeriu que ela começasse a trabalhar na empresa de sua família, Abbe temeu que se tornasse um ornamento insignificante pelos cantos da pequena indústria. Mas precisava do emprego. Não podia se dar o luxo de hesitar. Começou há  quase quatro anos, semanas depois da alta hospitalar.

Iniciou auxiliando na averiguação da limpeza das caldeiras e demais utensílios de produção. Tratava-se de uma empresa limitada pela tradição minimalista na família Gebitte. E isso afetou drasticamente o desempenho das vendas nos últimos anos. A empresa tinha um enorme potencial e implorava por mais espaço para expandir suas raízes, mesmo mantendo a proposta artesanal. Mas os senhores Gebitte nunca tiveram energia (e menos ainda depois de velhos) para arrancar a empresa do vaso e replantá-la num campo de terra fértil.

O fato é que o maquinismo dos negócios soavam magicamente instintivos para Abbe, como um organismo absolutamente lógico funcionando atrás de uma parede transparente. Surpreendeu-se com a própria capacidade em identificar as peças defeituosas do sistema e adequá-las ou removê-las. 

Há um ano, passara a integrar o setor administrativo da empresa como vice- presidente. Um crescimento que atribuía ao próprio mérito. Então passou a viver pelo trabalho. Lembrava-se de como questionava a sanidade das pessoas que viviam daquela forma. Os resultados positivos de um trabalho bem feito podiam ser bem inebriantes. Até o gosto do café parecia melhor quando pensava nas curvas dos gráficos.

_ Por favor, mais um _ Abbe acenou para o garçom, pedindo mais um espresso e  um scone com chocolate amargo.

_ Parece que se mudou para o apartamento do andar de cima por causa dos pãezinhos e desse  café maravilhoso  _ O homem disse, degustando-o.

_ Na verdade... o café se instalou aqui nas semanas que eu me mudei para cá _ Abbe explicou, fazendo mentalmente os cálculos. _ Foi a sorte sorrindo para mim.

Já fazia exatamente dois anos que ela se mudara no apartamento do andar de cima à cafeteria. Apesar da excelente localização, ela às vezes pensava em se mudar de lá. Não só porque o apartamento era pequeno, e precisava ser meticulosa em seus movimentos para não bater os quadris nas quinas, mas também porque havia muito barulho naquela altura da avenida São Paulo, principalmente durante a noite. 

Canção para o Anjo I (COMPLETO)Onde histórias criam vida. Descubra agora