Abbe estava com a atenção travada no quadro da parede à sua frente, questionando-se como aqueles olhos pintados em tons de vermelho conseguiam ser tão assustadores. Seu pai tinha um tremendo mau gosto para artes. Mas aquela foi sem dúvida a pior aquisição de todas.
_ Então se importa de esperar o Dr. Fantousse por aqui mesmo? _ Roger perguntou. _ Ele me ligou e disse que vai se atrasar um pouco.
_ Não _ Ela respondeu, ainda vidrada nos traços de tinta.
Era a primeira vez que o Dr. Fantousse se atrasava para uma sessão.
_ Quer que eu peça comida para você? _ Ela perguntou, olhando o relógio.
_ Não deve se preocupar comigo, querida _ Ele disse, virando de costas, abrindo as gavetas de arquivos. _ Deve se concentrar nas terapias. Deve estar bem para viajar para a Inglaterra no ano que vem.
De repente, uma pilha de papéis caiu sobre os pés dele.
_ Ótimo _ Ele grunhiu, agachando-se para recolhê-los.
Abbe correu para ajudá-lo. Os papéis tinham um inexplicável cheiro de mercúrio, assim como tudo naquele consultório.
_ Tem que digitalizar essas coisas e salvar nas nuvens _ Ela sugeriu.
Ele fez que não a ouviu. Como sempre. A resistência de Roger à tecnologia já foi piada nas rodas de médicos. E ele sempre dizia que não havia nada melhor do que portas e gavetas trancadas à chave para preservar a privacidade de seus pacientes. Ele definitivamente morria de medo de hackers e vírus de computador, como se fossem mais perigosos ou eficientes que um pé de cabra.
_ O que é isso? Até parece que tentou escrever uma espécie atômica _ Ela perguntou, risonha, alcançando uma pasta nomeada com a letra H. Abriu a primeira página. Sabia que era a letra de Roger porque não havia nada mais indecodificável no mundo.
_ Não deve ler anotações médicas de outras pessoas _ Roger puxou a pasta das mãos dela, guardando-a no topo da pilha. _ Gostaria que alguém lesse as suas?
Enquanto ele organizava as pastas no armário, ela sentiu os olhos pesando. Bocejou. Sentou-se na poltrona de frente para a mesa dele.
Ao fechar os olhos, sua mente sobrevoou os objetos da sala. Podia vê-los com extrema perfeição. Cada detalhe, cada marca de dedo sobre a mesa, o sorriso limpo no rosto redondo da sua avó na foto, a cortina branca esvoaçando na janela, os troféus alinhados na prateleira.
Ela estava em tudo, menos dentro de si. Ela podia ver seu próprio rosto adormecido, os cabelos louros enrolados em torno do pescoço, a respiração movendo as orelhas da Minnie do seu moletom. Havia muitos olhos ao redor de si, todos vidrados na mesma coisa: as células do seu corpo evaporando no ar, desaparecendo, apagando os traços da sua existência.
_ Abbe? _ Os olhos verdes de Roger cresceram sobre ela. Estavam enormes, rigorosos, inquestionáveis.
_ Abbe? _ De repente, as cordas vocais dele se alargaram, seus olhos mudaram de cor.
Ela abriu os olhos, mas não conseguia se mover, já que havia bem pouco oxigênio nos seus neurônios.
Quando enxergou o rosto do homem de pele negra em cima de si, entendeu que estava despertando de um sonho. E lá estava ela, de volta ao maldito cárcere.
As paredes, o teto e os móveis brancos indicavam que não estava em seu quarto. Tratava-se de um lugar limpo, mas angustiante, tipo um quarto de hospital.
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Canção para o Anjo I (COMPLETO)
RomanceO intercâmbio na Inglaterra era para ser um ensaio de liberdade para Abbe, uma jovem de 21 anos, que vivia sob a sombra da psicose desde a infância. Ela tinha uma forte expectativa de que fosse o primeiro passo rumo a uma vida normal. Mas alguns di...