No outro dia, da janela, Abbe viu a floresta fechada de pinheiros, uma faixa de pequenas pedras brancas ao redor da casa, a névoa levantando-se do topo das árvores. E bastou isso para que se sentisse um pouco mais leve. O bocejo profundo era como uma redenção suprema capaz de limpar completamente sua alma.
Pouco tempo depois, sentiu a fome cantar no estômago. Por sorte, havia uma jarra de água no criado. Melhor preencher o estômago com água do pedir o que comer ao demônio, ela pensou.
Passadas algumas horas, ele bateu na porta. Perguntou se ela queria descer para comer ou se preferia que o jantar subisse. Ela não lhe retornou, mas temia que ele abrisse a porta e a obrigasse, o que por sorte não aconteceu.
Em seguida, ela fechou a cortina do quarto. Voltou a se deitar, mas dessa vez de bruços, posicionando o travesseiro embaixo do estômago.
No outro dia, acordou com o próprio ruído de fome. Choramingou, rolando de um lado para o outro na cama. Para piorar, sentia o cheiro de café e torrada subindo lá de baixo. A água já tinha acabado, então ela cobriu a cabeça com o travesseiro, lutando para dormir de novo. Mas nada parecia capaz de aplacar a fome ressentida.
Abbe não resistiu. Bateu na porta do quarto, que quase instantaneamente foi aberta do lado de fora.
Estava absolutamente embaraçada quando pisou para fora do quarto, minutos depois, descalça, de ponta de pés, desejando loucamente ser um fantasma.
Richard estava sentado na ponta da mesa, pinçando com os dedos o lábio inferior, os cabelos bagunçados, os olhos fundos e cansados pregados na tela do notebook, como se estivesse vogando num mundo a parte.
Ela foi até o pequeno balcão, onde estavam as torradas e uma pequena travessa com frutas cortadas, cobertas com mel e aveia. Ao lado: a cafeteira, a jarra de leite e de suco de laranja. As torradas ainda estavam quentinhas, perfeitamente amontoadas umas nas outras. Ela encheu a caneca até a borda com o café. Mergulhou a torrada no pote de geleia. Comeu todas rapidamente. Não gostava muito de frutas, mas limpou a travessa.
Acabou de comer e já foi cruzando a sala rumo à escada, desviando secamente de Richard, quase flutuando.
_ A internet é péssima por aqui _ Ele disse quando ela subiu o primeiro degrau, sem tirar os olhos do notebook. _ Mas é o bastante para você arrumar um passa tempo.
Ele acabou de falar e Abbe olhou para a mesa. Viu um notebook fechado do outro lado dela, coberto por uma pequena pilha de revistas. Hesitou por um instante. Mas o ignorou. Voltou a subir as escadas. Jogou-se de novo na cama. Dessa vez, ele não subiu para fechar a porta do quarto, o que certamente significava que estava lhe oferecendo livre trânsito pela casa.
Ela folheou alguns livros. Mas o maldito cheiro dele estava impregnado nas páginas.
Por causa da total falta do que fazer, os três dias seguintes passaram bem devagar. De certo modo, já havia se acostumado com o isolamento. Mas era diferente da mansão, com livros novos em folha, TV, piscina e acesso à internet.
Nenhuma palavra foi dita em três dias inteiros. Abbe descia apenas para pegar comida, que ele preparava e deixava no balcão da cozinha.
Richard estava quase sempre concentrado no notebook ou nos livros. O banho dele costumava ser bem rápido. Abbe fingia dormir, com a cabeça coberta pelo lençol, quando ouvia ele subir as escadas, sempre nos fins de tarde.
Mas no quarto dia, o tédio a impeliu partir para o notebook, ainda intocado, embaixo das revistas. Constatou que de fato o sinal de internet era péssimo, e seu trânsito pela web era ainda mais restrito do que antes.
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Canção para o Anjo I (COMPLETO)
RomanceO intercâmbio na Inglaterra era para ser um ensaio de liberdade para Abbe, uma jovem de 21 anos, que vivia sob a sombra da psicose desde a infância. Ela tinha uma forte expectativa de que fosse o primeiro passo rumo a uma vida normal. Mas alguns di...