O rosto de Gustav cobria o último feixe de luz do topo das árvores, os cabelos úmidos colados na testa e nas laterais do rosto. Sua presença era como uma sombra turva expandindo-se nos movimentos secos do vento, os olhos eram duas esferas pretas, pulsando numa pintura vermelha.
Abbe não sabia, mas estava segurando o fôlego há algum tempo. Só se deu conta disso quando a ausência de sentidos a levou para um canto escuro dentro da cabeça. Então puxou o ar com força, firmando-se milagrosamente sobre as pernas. E naquela momento, constatou os sinais de álcool no hálito dele.
Ela torceu o pescoço para o lado, a saliva esfolando o canal da garganta.
_ O que devo fazer para que mantenha esses olhos abertos, Branne? _ Ele soprou, pousando os lábios gelados e secos no topo de sua cabeça. _ Olhe para você... Olhe para onde me arrastou...
A mão dele abriu na lateral do pescoço dela, pairando sobre a pele num toque ameno, detido, trêmulo.
_ Quer saber como é girar a faca em alguém, Branne? Então só abra os olhos. Veja o que você está fazendo comigo.
O silêncio embalou-se no ar gelado, arrastando-se por um tempo torturante.
Um riso interno socou subitamente o pulmão dele para fora.
_ Mesmo depois de tudo que o imbecil do meu irmão te fez, como você pode olhá-lo daquele jeito? O quê, está apaixonada por ele? Está apaixonada por ele, é isso? _ Perguntou, num misto de estupefação e decepção.
Riu encolerizado. Mas depois foi se silenciando, olhando para ela como se realmente esperasse uma reação, uma contestação.
Ela tentou abrir os lábios, mesmo sem ter o que dizer, nas ondas do seu problemático instinto de defesa. Temia que ele pudesse obrigá-la, mas era definitivamente impossível conter a paralisação profunda do próprio corpo.
Reprovando o silêncio, Gustav respirou. Suas narinas dilataram junto com o maxilar. E de repente, levou um soco na árvore, ao lado da cabeça dela. Guiou instantaneamente a mão à própria boca, os dedos sangrando, torcendo-se, gemendo de dor.
No minuto seguinte, depois de retomar o fôlego, um riso descontrolado explodiu da sua boca sem cor.
_ Deixa eu ver se entendi... Você... você está apaixonada por ele e mesmo assim está aqui agora, numa tentativa absurda de fuga? Nossa! Você é tão incoerente... _ Ele pausou. Balançou a cabeça. Orientou os lábios para perto do nariz dela. _ E você pelo menos sabe para que lado fica a estrada mais próxima daqui? São exatamente 5,5km de floresta até lá. Eu não dou cinco minutos para os seguranças apareçam aqui. C.I.N.C.O M.I.N.U.T.O.S. E como você poderia enfrentá-los? Eles nem precisariam de uma arma para apagá-la e levá-la de volta. Nem eu precisaria mais do que um braço para apagá-la e levá-la de volta. Você não tem para onde correr, Branne. E é muito burra para perceber isso. E como odeio gente burra, estou desistindo de protegê-la da merda da minha família.
Ela exalou um sopro dolorido. Uma lágrima desceu na bochecha quando virou os olhos amedrontados para ele.
Gustav passou a encará-la em silêncio, as veias do pescoço se aplanando à medida que os segundos passavam, a razão aplacando misteriosamente suas expressões. Havia claros sinais de arrependimento em seus olhos, como no biblioteca, da outra vez. Era isso e mais algum coisa, algo forte o suficiente para repousar bruscamente os músculos do seu corpo.
Ele levou uma mecha do dela cabelo para cima da cabeça. O pescoço quebrou-se um pouco para baixo, os olhos pretos e pastosos cerrando-se como a cortina de um teatro, após a representação perfeita do caos.
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Canção para o Anjo I (COMPLETO)
RomanceO intercâmbio na Inglaterra era para ser um ensaio de liberdade para Abbe, uma jovem de 21 anos, que vivia sob a sombra da psicose desde a infância. Ela tinha uma forte expectativa de que fosse o primeiro passo rumo a uma vida normal. Mas alguns di...