Capítulo 51

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Faltava exatamente um dia para a final do concurso.

Jennifer me deixou revisar meu texto de defesa no caixa, pois o movimento na segunda-feira era baixíssimo. Minha cabeça estava surtando, eu não conseguia imaginar que em breve eu iria falar na frente de milhares de pessoas sobre transgeneridade.

Naquele dia, minha disforia não estava muito controlada. Meus ombros estavam encurvados para ocultar os intrusos no top de academia – sem condições de usar binder durante o trabalho – e toda hora eu mexia na blusa para deixá-la afastada do corpo e assim cobrir minhas curvas.

Guardei o papel da defesa na gaveta abaixo do caixa para atender uma cliente. Ela não usou nenhum pronome nas falas, o que foi razoavelmente bom. Na verdade, ela sequer olhou para mim, e isso era uma coisa desagradável às vezes, pois algumas pessoas não eram tão educadas, provavelmente por se acharem superior a um simples operador de caixa.

Alguns dias eram mais difíceis do que outros. Contudo, eu nunca iria reclamar.

Terminei de atender uma senhora quando o motivo dos meus surtos internos de disforia apareceu de surpresa na loja. Aquele seria um dia ainda mais difícil.

Jason foi direto ao caixa, dessa vez não estava de jaqueta pelo dia não estar tão frio como os outros, usava apenas uma blusa de manga curta branca. O seu corpo não era musculoso como o de Marcos, mas era possível ver que ele fazia academia. Suas tatuagens nos braços ficaram expostas e ele esticou a mão para alcançar um óculos estilo ray-ban do suporte ao lado de onde eu estava.

— Boa tarde, posso ajudar? — perguntei com ironia, as mãos juntas em frente ao corpo apoiadas no balcão, esperando o garoto parar com o teatro e assumir que estava lá para me ver.

Jason me olhou de lado e riu. Era um riso despreocupado, nem parecia o mesmo da última vez.

— Boa tarde, eu vou querer esses óculos, por favor!

Ele colocou a armação em cima do balcão e tirou a carteira do bolso. Era de couro, provavelmente legítimo, e havia alguns cartões, notas de dinheiro e algo que eu imaginava ser uma camisinha discretamente escondida ali.

"Uma carteira de homem."

Afastei o pensamento e me lembrei de que eu não precisava ter uma camisinha em uma carteira de couro para ser homem.

— Deu 79,90.

— Tem desconto à vista? — Franzi as sobrancelhas por não entender o termo e ele balançou a cabeça. — Esquece, não tem graça te zoar porque tu não entende.

— Eu queria era saber se você realmente veio aqui comprar um óculos ou se queria me ver. — Provoquei enquanto colocava o acessório na sacola e esperava a impressão da nota fiscal.

— Os dois, o dia tá com muito Sol e eu queria falar contigo.

— Você quer falar? — Meus olhos se estreitaram de desconfiança. Entreguei a sacola e a nota em suas mãos, intrigado. — Quer falar o quê?

— Ooooi, gatinhos! — A voz de Leo me interrompeu e ele apareceu pela porta de funcionários para ficar ao meu lado. — Vou te cobrir agora, vai fazer teu horário.

— Oi?! Espera, isso foi planejado? — Alternei meu olhar para Jason e Leonardo e os vi se cumprimentarem com um hi-five. — Vocês se conhecem?

— Como tu acha que eu descobri onde tu trabalha? — Jason deu de ombros e Leo soltou uma risadinha.

— Temos altas histórias de rave, bonito! Outro dia te conto! Agora vai lá se acertar com teu best, anda, anda, anda!

Leonardo quase me expulsou para fora da loja apenas para me fazer falar com Jason. Ele sugeriu atravessar a rua para chegar à praça, que estava ocupada apenas por um grupo de idosos fazendo exercícios na academia popular.

⚧ | Azul é a Cor do SilêncioOnde histórias criam vida. Descubra agora