Capítulo 2

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Eu havia acabado de chegar do último dia do workshop que Paul me inscreveu com uma dor de cabeça insuportável.

Workshops eram eventos interativos, que ao invés de existir um palestrante e um público bem delimitado, todos tinham espaço para participar. Não era bem o tipo de coisa que eu gostava, mas Paul recebeu a recomendação de um colega da empresa depois de descobrir que a sua enteada iria entrar no curso de Publicidade.

O evento durou apenas quatro horas, mas foi o suficiente para me fazer surtar. Me joguei na cama, ainda sem trocar de roupa, e apertei o travesseiro em meu rosto.

Internamente, estava tudo uma bagunça.

Joguei o travesseiro para o lado e me virei para encarar o teto. Eu ainda nem havia tirado os tênis all-star dos pés quando me deitei, mas não me importava. Pisquei várias vezes para um ponto imaginário no teto cor bege até sentir vontade de chorar.

Em uma das rodas de conversa sobre Comunicação, falaram de Diversidade na Mídia. Entre tantos debates e reflexões, alguém falou sobre pessoas trans ao citarem a comunidade LGBT. Desde aquela hora, eu não conseguia mais tirar isso da cabeça.

Relembrei os meus treze anos. Era uma memória não tão recente, mas sempre que eu a lembrava, sentia a mesma dor que senti naquela idade. Por esse mesmo motivo, eu havia a enterrado em meu inconsciente e ficado esse tempo todo sem acessá-la, até aquele dia.

Eu ainda conseguia sentir o olhar de desespero da minha mãe. Estávamos na biblioteca de casa e ela havia encontrado o meu caderno escondido no meio da estante de livros. Nele, eu explicava com detalhes como eu iria ser um garoto, desde terapia até hormonização. Olhando para trás, eu não sabia como havia planejado tudo aquilo, pois meu acesso a Internet era limitado e eu não me lembrava de ter pesquisado sobre tanta coisa específica. Eu nem sabia que isso era ser uma pessoa transgênero.

Mas eu sabia que eu era assim, de alguma forma sabia.

Fechei os olhos. Mesmo sendo doloroso, eu queria reviver aquela cena. Era quase um masoquismo.

Me lembrei de minha mãe rasgando as folhas do meu caderno e dizendo que eu nunca mais pensaria em uma coisa daquelas; que eu era uma garota enviada por Deus e que Ele quem me criara assim. Ela chorou bastante naquele dia.

Seis anos depois, era eu quem estava chorando.

A matrícula na faculdade seria em três dias, mas depois daquilo eu mal tinha vontade de sair da cama. Aquelas lembranças me consumiam. A roda de conversa que parecia tão banal foi como um balde de água fria em minha falha concepção do meu gênero.

A porta do meu quarto foi aberta e olhei para a minha mãe, assustado. Ergui um pouco a cabeça para vê-la, usava uma regata branca e short jeans, com os cabelos castanhos lisos e soltos.

— Se arruma, vamos ao mercado! — Ela disse rapidamente e saiu logo em seguida. Felizmente não percebeu a minha cara de choro, senão teria feito um milhão de perguntas. 

Me levantei da cama e tirei a roupa que estava no meu corpo, então vesti um short de tecido largo que não realçava minhas coxas e uma blusa do Star Wars comprada na seção infantil masculina — minha roupa favorita. Como eu sabia que minha mãe reclamaria da minha falta de vaidade, coloquei um par de brincos prateados discretos apenas para dizer que eu ainda me importava em usar os acessórios que ela comprava. 

Fui até o espelho de corpo fixado na porta do meu quarto, já todo montado por Paul. Minhas mãos foram para meu cabelo curto e senti os fios castanhos levemente claros da minha nuca começarem a crescer. Por um segundo, tive a recordação de quando raspei o meu cabelo há um ano e minha mãe teve uma mistura de reações: por um lado, dizia que eu ficava mais atraente com os cabelos grandes; por outro, me aplaudia dizendo que mulheres não eram obrigadas a ter o cabelo grande como símbolo de feminilidade. Ela se contradizia o tempo todo, às vezes parecia tentar entender, mas às vezes dava passos para trás. 

⚧ | Azul é a Cor do SilêncioOnde histórias criam vida. Descubra agora