Prólogo

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Antes do meu nascimento, minha mãe não sabia meu sexo

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Antes do meu nascimento, minha mãe não sabia meu sexo.

Meus pais não possuíam recursos suficientes para fazer exames e ultrassons. Sendo assim, a escolha do meu nome foi um tanto complicada no início. Meu pai dizia que se eu nascesse garota, me daria o nome de Jessica. O motivo: ele era fã da Jessica Alba. Se eu nascesse garoto, seria Robert em homenagem ao Robert De Niro. Felizmente, minha mãe era mais sensata e interveio.

No fim, ambos chegaram a um consenso e decidiram por Charlie: um nome neutro. Assim, todos estariam satisfeitos e minhas tias poderiam bordar meu nome em toalhinhas antes do meu nascimento tranquilamente. A decoração do meu quarto e minhas roupas foram em tons neutros, pois havia uma preocupação absurda com as cores que eu iria usar. "Imagina comprar tudo rosa e nascer um menino, que vergonha!", era o que todos da minha família diziam.

Então eu vim ao mundo como Charlie, do sexo feminino. Todos respiraram aliviados e comecei a receber as tais roupas cor-de-rosa a cada vez que meu tamanho aumentava um número.

Nunca tive problemas com a cor das minhas roupas, eu gostava de rosa. Mas eu também gostava de azul. E verde. Até marrom.
E eram os outros que se incomodavam com isso, pois não eram "cores de menina".

Eu não me importava tanto com o meu cabelo comprido, mas também gostava de escondê-lo em um boné algumas vezes. Eu me sentia bem em um vestido, mas também usava roupas mais largas que ocultavam minha cintura. Então falavam que eu era uma garota descuidada e sem vaidade, mas eu não entendia aquelas afirmações, era como eu me sentia bem.

Assim foi a minha vida durante treze anos.

Durante todo esse tempo, eu sabia que faltava algo em mim. Eu não conseguia fazer parte dos grupos de garotas do colégio; não me sentia tão confortável com o meu corpo quanto outras meninas pareciam estar; achava estranho quando minha mãe falava coisas como: seja uma mocinha! Você é uma princesa!

Até eu descobrir a resposta mais difícil e, ao mesmo tempo, mais óbvia do mundo: eu não era uma garota.

E então minha mãe também descobriu. Isso foi no início de 2012, quando eu havia acabado de completar treze anos.

Estávamos na biblioteca de casa, um cômodo pequeno e confortável no qual eu vivia lendo e escrevendo, mas que não estava nem um pouco confortável naquele momento.

Ela ergueu meu caderno com os olhos em chamas. Abriu-o e começou a retirar folha por folha com todas as minhas anotações. Sua voz de desespero podia ser ouvida por toda a casa.

— EU NÃO ACREDITO NISSO!

Eu estava no meio do cômodo vendo aquela cena e não conseguia me mexer, sequer chorar; eu apenas encarava minha mãe com medo.

Durante semanas, eu anotei naquele caderno todos os meus sonhos, desejos, metas. Então, minha mãe o encontrou escondido por entre os livros na estante e descobriu o meu maior sonho: ser um garoto.

Eu não tinha muita noção das coisas aos treze anos. Na época, ser um garoto era algo dentro do possível para mim. Se eu queria ser um garoto, por que não ser? Na minha cabeça, aquilo era algo tão simples quanto decidir um corte de cabelo. Recomendações de psicólogos, hormônios, exercícios físicos, clínicas, cirurgias: tudo o que me ajudasse a ser um garoto estava lá naquele caderno, anotado.

E minha mãe leu tudo.

— Eu não sei aonde eu errei com você! Você é a minha princesa! — Ela caiu ao chão e cobriu seu rosto com os papéis rasgados. Senti o impulso de me aproximar e pedir desculpas, mas algo dentro de mim dizia que eu não estava fazendo algo errado.

— Mãe...

— Deus te fez uma garota! Você está indo contra Deus, Charlie! E Ele me deu a tarefa de te criar!

Seus olhos vermelhos pelo choro me encararam. Uma sensação de vergonha me invadiu.

— Mas mãe, eu...

— EU NÃO QUERO TE OUVIR! — Sua voz saiu de forma arranhada e rouca. Abracei meu próprio corpo e abaixei a cabeça, ainda sem conseguir chorar. — Isso deve ser alguma maldição, deve ter a ver com o seu pai! Ele passou essa maldição pra você!

— Não fala assim dele! — Tive coragem para gritar de volta. Desde a separação dos dois, todas as coisas ruins que aconteciam conosco eram culpa do meu pai, segundo minha mãe. Eu já havia me cansado disso.

— Olha só como você ficou! Você não é a filha que eu criei! — Minha mãe se levantou e foi até mim, dando um tapa em meu rosto. Virei a cabeça para o lado e cobri a bochecha avermelhada com as mãos, sentindo o ardor na região. Algumas lágrimas finalmente desceram.

Aquela seria, de longe, a pior situação que eu já teria passado.

— M-Me desculpa. — gaguejei em voz baixa.

— Eu não quero saber dessas coisas nessa casa! Você nunca mais vai falar, nem pensar e nem sonhar sobre isso! Você me entendeu?

Minha mãe me olhava com uma decepção que eu nunca havia presenciado. Sem escolha, balancei a cabeça rapidamente, concordando com aquilo. Em seguida, o seu choro aumentou e ela se aproximou de mim com os braços abertos.

— Eu só quero o melhor pra você, minha filha! — Ela disse chorosa e me deu um abraço apertado, chorando cada vez mais. Sem saber o que fazer e ainda desnorteado com aquilo, não reclamei do seu gesto.

Eu queria gritar, pedir a ela que me deixasse ser livre, explicar que eu queria ser um garoto, ou melhor, que provavelmente eu já era um garoto, mas que havia nascido em um corpo diferente; queria dizer muitas coisas, mas a decepção em seus olhos me fez aceitar aquilo.

Então não toquei mais no assunto. Isso durou seis anos.

Mas é impossível viver uma mentira por tanto tempo.

⚧ | Azul é a Cor do SilêncioOnde histórias criam vida. Descubra agora