Não bastando termos ido parar em uma cidade amaldiçoada, estávamos presos ali até que o Ferreiro dissesse que poderíamos sair. O que nos restava fazer no momento era colaborar.
- Eu achei que eles poderiam saber de algo, mas ninguém nunca ouviu falar desse lugar antes... - disse Liz me tirando de meus pensamentos.
Ela andava de um lado para outro inquieta.
- Minha querida, vai ficar tudo bem - disse Thiago.
A voz de dele era tão tranquila que até me fez acreditar naquilo.
- Você está certo, vamos encontrar o culpado da morte do Ajudante, acho que inclusive isso pode estar ligado a nosso objetivo - disse Liz.
- Ligado de que forma? - perguntou Beatrice.
- Todas essas coisas estranhas começaram a acontecer depois que chegamos aqui, segundo os luzidios - disse Liz. - Acho que o assassino do Ajundante estava atrás de nós e queria nos passar alguma mensagem fazendo aquilo, talvez que não estamos seguros aqui.
- Faz sentido - disse Dante. - Seja lá quem fez aquilo, escreveu no chão ao lado do corpo do Ajundante "manancial".
- O que isso significa? - perguntou Arthur.
- Manancial é uma fonte - explicou Dante. - Eu acho que ele estava se referindo a cidade, Santo Berço é de certa forma uma fonte para uma entidade mágica muito forte.
- Sim - concordei com ele. - Eu acho que essa entidade usa dos moradores para ficar mais forte de algum jeito.
- Então você acha que aqui é uma espécie de dreno de energia? - perguntou Liz.
- Pessoal - chamou Joui. - Se a teoria de vocês estiver certa, a membrana é quase inexistente aqui dentro.
- Sim - disse Liz. - Esse lugar é quase conectado diretamente com o Mundo Inferior.
- Cesar-Kun, você sente alguma coisa diferente em Santo Berço? - Joui me perguntou.
- Eu senti muita morte vindo do Bosque da Provação, mas de resto, nada muito diferente - disse eu.
- Eu só consegui ver a conexão que a cidade tinha a essa tal entidade quando entrei no labirinto - contou Dante. - Quando usei o mesmo ritual no Joui, não vi nada em volta.
- Está sugerindo que eu deveria entrar lá dentro? - perguntei.
- Sim - disse Dante. - Talvez você possa encontrar algo além do que já vi.
Notei algumas pessoas andando pelas ruas, o funeral do Ajundante havia acabado.
Liz correu para pegar seu prisma transparente e o guardar novamente na mochila quando viu Ferreiro passar.
- E ainda não podemos esquecer de que o Ferreiro quer saber sobre a profecia... - disse Liz em voz baixa.
- Nós não somos idiotas para contar uma coisa dessas - disse Beatrice. - Não tem sentido, viemos aqui por um acaso.
- É, definitivamente não vamos contar - disse Liz. - Mas eu não acredito que tenha sido um acaso.
- Eita que voltou a Liz paranóica - cochichei para Joui ao meu lado.
- Cesar-Kun - Joui me repreendeu.
- Vai, ela é um pouquinho paranóica.
- Talvez um pouco... - disse Joui. - mas não fala para ela que eu te disse isso.
- Tá bom - disse rindo.
Ele sorriu, somente isso bastou para eu ter uma sensação estranha em meu estômago, não era ruim, só algo novo, inesperado.
- Porque você sempre fica vermelho quando está perto de mim?
- Hum? - eu nem tinha notado o quão quente meu rosto estava.
- Você fica muito fofo desse jeito - disse Joui.
Ele estava tentando me quebrar por acaso? Pois conseguiu.
Tentei esconder parte do rosto com meus cabelos, o que não funcionou.
- Joui é que eu... - minha mente pensava em mil e uma desculpas diferentes para contornar aquela situação o mais rápido possível.
- Você achou que eu não tinha notado isso? - ele me perguntou.
Não parecia bravo, pelo contrário, o asiático falava sobre isso como se fosse a coisa mais normal do mundo de se conversar.
- Ou o seu ciúmes do Nataniel - disse Joui. -, ou como você tem se aproximado mais fisicamente de mim...
Aparentemente, tinha acabado de descobrir que, diferente de Joui, eu era péssimo em esconder meus sentimentos.
Pela primeira vez em muito tempo, desviei meu olhar dele, eu não ia conseguir falar sobre aquilo, mas também não tinha mais como negar.
- Gente - Thiago nos chamou. - Vamo?
- Pra onde? - perguntei.
- Torre do Porteiro - disse Thiago rindo. - Vocês não prestaram atenção no que a Liz disse, né?
- Não, é claro que prestamos atenção - disse Joui.
- Uhum - disse Thiago sorrindo. - A Liz quer seguir com o plano inicial de interrogarmos o Porteiro.
- Sim, nós saibamos disso, porque prestamos atenção - Joui se levantou e estendeu sua mão para mim - Vamos, Cesar-Kun.
Eu a segurei e ele me ajudou a levantar, descemos os degraus da varanda da Taverna e nos aproximamos do restante do grupo.
Os limites da cidade não eram tão longe de onde estávamos, já que o vilarejo era pequeno.
Joui foi junto de Arthur e Dante na frente, Liz e Beatrice estavam no meio do grupo. Percebi que os irmãos não estavam se falando muito, Bea estava chateada com Dante por ele não ter contado o que se lembrava de verdade e o loiro também não insistiu em conversar com sua irmã.
- E aí, Cesinha - Thiago passou o braço em volta do meu pescoço. - O que aconteceu para você estar parecendo um pimentão?
Ótimo, mais um para ficar enchendo meu saco com aquele assunto. Pensei.
- Ah, cala a boca - disse irritado.
- Tá bravinho porque? - perguntou Thiago sorrindo. - Só estou tentando ajudar.
- Eu não preciso de ajuda - disse eu.
- Não passou a fase de negação, ainda? - disse Thiago.
- Do que você está falando? - preferi fingir que não sabia do que ele estava se referindo a continuar essa conversa.
- Relaxa, eu também já passei por isso - disse ele. - "Somos só amigos", você acha que está enganando quem?
Eu o ignorei, mas não adiantou de nada, Thiago continuou:
- Tu nem consegue mais falar com o Joui sem ter um troço - disse Thiago. - Onde é só amizade isso eu não sei.
- Thiago, quer parar? Ele vai acabar ouvindo - disse eu.
- Só queria chamar sua atenção, mesmo - Thiago falou um pouco mais baixo. - Vai me escutar agora, cacete?
- Não faz diferença, tu vai me obrigar a ouvir de qualquer forma... - disse eu.
- Que bom que sabe disso - disse Thiago. - Cesinha, está tudo bem você estar se sentindo assim, eu sei que a nossa cabeça sempre acaba complicando tudo, mas prometo que não é uma coisa ruim.
Olhei para baixo, já me sentia envergonhado quando Arthur falava sobre isso, agora eram duas pessoas insistindo naquilo.
- O primeiro passo é aceitar que você está apaixonado - disse Thiago.
Andei até Beatrice e Liz e me mantive ao lado delas.
- Ei! - ouvi Thiago dizer. - Você não pode fugir disso para sempre!
- Eu posso sim! - respondi.
Seguimos reto pelo caminho até a grande torre na entrada de Santo Berço.
Joui bateu na porta, o que fez com que abrisse uma pequena fresta, ela estava destrancada.
- Senhor Porteiro? - Joui o chamou abrindo a porta com cuidado.
A parte de dentro da torre lembrava muito um farol: tinha uma cama embaixo de uma escada em espiral.
- Mas não é possível, até a porra da escada é em espiral - disse Thiago. - Qual é a da obsessão desse povo com isso?
- Eu não sei se é uma boa hora para falar, mas espirais costumam representar a morte - contou Dante.
- Como você sabe disso? - perguntou Beatrice desconfiada do irmão.
- É o básico da magia que se precisa aprender andes de utilizar qualquer ritual - disse Dante. - Não disse nada antes porque os luzidios falaram que Santo Berço tinha uma forte relação com Hades.
Vasculhamos o local, não tinha muita coisa para se ver no andar de baixo, era tudo bem simples.
- Ô rapaziada - Thiago nos chamou. - Acho que achamos o assassino.
Ele apontou para debaixo da cama do Porteiro.
Me abaixei para conseguir ver melhor.
Roupas cheias de sangue estavam espalhadas no chão junto de um pequeno frasco com resquícios daqueles cristais verdes.
- Acho que Porteiro não é tão legal quando pensávamos... - disse Liz. - Cesinha, será que você consegue dar uma olhada lá encima para nós? Tipo, pelas sombras?
- Claro, mas não garanto que serei silêncio - disse enquanto subia o primeiro degrau.
As sombras não estavam tão fortes assim naquela hora do dia para conseguir me camuflar completamente, mesmo que estivesse tentando não chamar atenção, qualquer um que olhasse bem poderia me encontrar facilmente. Abri a porta sem muito cuidado.
A parte de cima era semelhante ao primeiro andar, porém, era coberto por por vidro transparente, tinha uma poltrona e uma mesa no canto com várias folhas de desenhos dos animais de Santo Berço espalhados. Da vista que tinha lá de cima, conseguia ver a cidade inteira e pude ver com clareza agora: a Névoa em volta do labirinto formava uma grande espiral. Olhando do outro lado da sala, consegui ver ao longe... um ônibus parado? O motorista ainda tentava concertar o motor, algumas pessoas estavam espalhadas pelo local aguardando para continuar a viagem impacientemente.
Aquilo era impossível, já havia se passado mais de um dia, como eles ainda estavam lá? Será que a mesma cena de antes estava acontecendo agora com outro motorista?
Quase escorreguei em um desenho jogado no chão, ao pegá-lo, percebi que ao invés de alguma pássaro-cobra ou uma joaninha arco-íris, um grande símbolo em espiral havia sido desenhado, fui até a mesa com mais papéis, não precisei me esforçar para encontrar esse mesmo símbolo desenhado perfeitamente inúmeras vezes.
- Gente, sobe aqui! - gritei.
Na mesma hora, ouvi muitos passos vindo da escada.
- Você tá bem, Cesar-Kun? - Joui foi o primeiro a chegar.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou Arthur entrando logo em seguida.
Mostrei ao grupo tudo o que havia encontrado.
- Isso está sendo muito fácil... - disse Liz.
- Fácil? - perguntei indignado.
- É, foi muito fácil achar aquelas roupas em baixo da cama, esse papéis... - Liz guardou um dos desenhos consigo.
- Fácil pra você e pro Thiago que estão treinando no acampamento desde criança - respondi.
- Parando para pensar, indo pela lógica de Santo Berço, eles confiam cegamente uns nos outros, não teria o porquê alguém vir revisitar a Torre do Porteiro - disse Dante.
- O que vocês estão fazendo aqui? - ouvi uma voz familiar vindo de trás.
Ao me virar, me deparei com o Porteiro.
Liz sacou suas foices e apontou para ele.
- É bom você começar a explicar o que é isso tudo - ameaçou Liz. - Se tentar fugir, vai ser pior para você.
Porteiro ergueu as mãos em redenção.
- Vocês estão bem? - perguntou ele. - Graças a Hades, estão seguros aqui, eles podem chegar a qualquer momento...
- Eles quem? - perguntou Thiago tirando sua espada da aljava. - Do que você está falando?
- Se acalmem, eu estou do...
- Calma o cacete, você matou o Ajudante! - Liz encostou uma das foices no peito do Porteiro. - Alguém fecha a porta, ele não sai daqui até sabermos para onde ir e finalmente podermos sair desse lugar.
Beatrice, que havia entrado por último, bateu a porta com tudo, a fechando e se encostou na parede ao lado.
- Eu respondo o que vocês quiserem - disse o Porteiro. - Vocês tem que sair daqui o mais rápido possível, precisam me escutar.
Apertei o ombro do luzídio, senti seus músculos se tencionando, ele estava muito nervoso, desesperado.
- Deixem ele falar - disse eu. - Se mentir, iremos saber.
Mesmo podendo sentir o que o Porteiro sentia, tinha que tomar cuidado no que levar como verdade, ele poderia acreditar nisso fielmente e não necessariamente ser o que aconteceu.
- Olha, eu peço desculpas por não ter contado para vocês a verdade quando chegaram - disse o Porteiro. - mas eu precisava descobrir se poderia confiar em vocês, precisava fazer o papel de bobo e inocente.
- Nos dias que vi vocês vindo para cá, eu já sabia que seria minha chance... - ele contou. -Eu precisava ver como vocês iriam reagir e como... ele iria reagir...
- Como assim? - perguntou Dante.
Porteiro inspirou fundo tentando manter a calma.
- Quando contei para o Ferreiro que vocês estavam vindo, ele começou a agir de uma forma estranha, ficou nervoso, me pediu para trazê-los para cá alegando que "Hades me disse que eles viriam, precisamos protegê-los" - contou o Porteiro. - Me pediu para não contar a ninguém que estavam chegando e, durante o dia todo, ele parecereu se preparar para algo.
- Ele instruiu o Doutor e o Hoteleiro, disse exatamente o quê falar e como - disse o Porteiro. - Eu percebi o quando o Ferreiro tem medo de vocês.
- Medo? - perguntou Arthur.
- Foi quando percebi também que vocês são a esperança que escondi dentro de mim a vida inteira - disse o Porteiro. - A esperança de destruir Santo Berço e proteger a Realidade.
- Do que você está falando? - perguntei.
- Um vou ser franco com vocês - disse o Porteiro. - Santo Berço é um lugar terrível, todos as pessoas que trazemos para cá caem nesse transe de que aqui é o melhor lugar do mundo.
- Então, as pessoas estão sobre o efeito de alguma coisa? - perguntou Arthur.
- Sim - respondeu o Porteiro. - Os todos os que vem aqui começam receosos, mas logo vão comprando a ideia de que Santo Berço é o paraíso e quando menos esperam... são transformados em luzidios.
- Eu já estou passando por esse processo? - perguntou Joui assustado.
- Não, para se tornar um luzídio verdadeiramente, tem que se tocar no Cristal Negro.
- Eu sabia que esses cristais não eram coisa boa! - disse Liz.
- Nós temos quatro tipos de cristais, os verdes de cura, os vermelhos de fogo, os azuis de gelo e os pretos... - disse o Porteiro. - eles tem a habilidade de transformar qualquer um em luzídio e não tem volta. Esse cristais ficam dentro da Caverna de Mineração, os ignaros só tem conhecimento deles quando o Ferreiro ou o Minerador os leva até lá e os transformam.
- Deuses... - disse eu.
- O Ferreiro queria os levar para lá o quanto antes, por isso fiquei aliviado de estarem aqui - disse o Porteiro.
- E porquê você matou o Ajudante? - perguntou Liz.
- Ele era meu melhor amigo, eu só queria livrá-lo desse inferno... - disse o Porteiro. - Eu planejei tudo, sabia que o Ferreiro aí tentar me achar, deixei claro que era eu.
- Desenhando esse símbolo em sangue? - Dante pegou um dos papéis no chão e mostrou para o luzídio.
- Vocês querem saber o que isso significa, não é? - ele perguntou. - O símbolo é Santo Berço. Quando eu nasci, isso era tudo o que conhecia, eu e o símbolo éramos o mesmo ser, não conseguia compreender nada além daquilo, era tudo o que existia.
Nós esperamos ele prosseguir sem interrupções.
- Mas em algum momento, a Ferreira e o Ajudante começaram a aparecer - contou o Porteiro. - O universo não era mais somente o símbolo. A Ferreira me ensinou a falar e me explicou que eu era um Manancial.
- Por isso você escreveu essa palavra ao lado do corpo... - disse Beatrice.
- Sim - confirmou o Porteiro. - Eu nasci e fui mantido isolado e a única coisa que eu tinha era um símbolo desenhado naquele quarto branco... ele era tudo para mim, não conhecia nada além disso.
- Que horrível, sinto muito por tudo que você passou - disse Dante.
- Obrigado - ele estava um pouco mais à vontade com nossa presença. - Eu sou o primeiro filho da Ferreira... o amor dela por mim foi mais forte do que a vontade de Santo Berço, ela não queria mais me ver como um Manancial.
- Ela te libertou - concluiu Joui.
Porteiro disse que sim.
- Tem algumas coisas que vocês não sabem sobre Santo Berço - disse o Porteiro. - A primeira é que o tempo passa diferente, enquanto aqui dentro de passou um dia, do lado de fora não passou nem meia hora.
- Mas... nós mandamos uma mensagem de Íris para o acampamento, eles não falaram nada quando dissemos que havia se passado três dias desde que partimos - disse Joui.
- Aquele bando de avoados - resmungou Liz. - nem devem ter percebido.
- Tem mais uma coisa que vocês deveriam saber - disse o Porteiro. - O Ferreiro é meu pai.
- Ele estava nos manipulando o tempo todo... - disse Arthur.
- Exato - disse o Porteiro. - Ele não quer que vocês recuperem a Máscara do Desespero.
- Porquê? - perguntei.
- Eu não sei - ele estava sendo sincero. - Só tenha certeza de uma coisa: não foi seu pai que os mandou para cá.
Confesso que fiquei um pouco alívio com isso.
- O Ferreiro quer transformá-los em luzídios e entregá-los para os Olimpianos - contou o Porteiro. - Ele me disse que era tudo para "proteger nosso lar".
- Você sabe onde está a Máscara? - perguntou Thiago.
- Eu não, mas sei com quem está.
_________________________________________Desculpem por ter ficado tanto tempo sem postar, estou ocupada com trabalhos e provas da escola.
PS: tenho dois outros capítulos já escritos, vou postar ainda hoje.
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O Segredo No Acampamento
FanfictionDeuses são reais. Todas as criaturas mitológicas são protegidas aos olhos mortais através da Névoa, porém, tudo tem suas brechas: semideuses, os descentes meio mortais dos deuses gregos. Seres extremamente poderosos e ao mesmo tempo tão vulneráveis...