Eu estava acostumado com uma ou outra experiência esquisita, mas aquilo foi um surto coletivo. Aquela aberração foi mais do que eu podia encarar.
Durante o dia seguinte, a escola inteira parecia ter decidido pregar uma peça em nós. Todos agiam como se estivessem completamente convencidos de que a Camila era nossa professora de inglês desde sempre.
Sr. Veríssimo aparentemente resolveu ficar na sala dos professores, não o vimos o dia todo para podermos perguntar sobre o ocorrido e para piorar Agatha estava muito estranha. Ela mal falou com a gente o dia todo, mas sempre estava por perto, como se estivesse tentando nos proteger de longe. Toda vez que pergutavamos sobre a professora Fátima ela hesitava e depois dizia que não existia, era como se quisesse nos falar a verdade, mas não pudesse.
Alguma coisa estava acontecendo. Alguma coisa ruim.
Não consegui prestar atenção nas aulas naquele dia. A cena daquele monstro nos atacando não saía de minha cabeça em loop.
– Chega! – exclamei, me jogando na minha cama. – A gente não pode só ignorar o que aconteceu!
– O que devemos fazer, então? – perguntou Arthur.
– Isso parece um beco sem saída, não tem o que fazer – disse Joui, frustrado.
– Podemos precionar a Agatha – propus. – Ela sabe da verdade e sempre hesita em mentir, ou seja, ela quer contar para nós. Se insistirmos, é capaz dela falar.
– Eu não sei se é uma boa ideia... – disse Joui relutante.
– Eu também não queria ter que fazer isso, mas não acho que temos outra escolha se quisermos descobrir o que está acontecendo – disse Arthur.
– E o sr. Veríssimo? Ele também sabe, ele me entregou a caneta. – Joui tirou uma caneta esferográfica do bolso. – Ainda não sei como funciona, não tive coragem de mexer nisso de novo, essa é a única prova que temos de que aquilo realmente aconteceu.
– É bem mais fácil precionar a Agatha, que já quer nos contar, do que o Velocímetro – insisti na minha ideia.
Arthur e Joui se entreolharam e começaram a rir.
– É Veríssimo – Arthur me corrigiu.
– Foi isso aí mesmo que eu falei! – disse emburrado.
– Claro, Claro – disse Joui sorrindo. – E como exatamente a gente obrigada Agatha a nos contar a verdade, Cesar-Kun?
Olhei para o asiático surpreso com a rápida mudança de opinião.
– Mas você acabou de dizer... – começou Arthur.
– Ainda não gosto da ideia, mas o sr. Veríssimo não daria o braço a torcer de qualquer forma, Agatha é nossa única esperança.
Por fim, decidimos que iríamos confrontar Agatha no dia seguinte durante o almoço.[•••]
Eu não consegui dormir direito, a imagem da professora Fátima se transformando naquele monstro se misturava com meus sonhos.
Estava novamente na sala de inglês, a professora transformada em minha frente, não havia nenhum sinal de Joui e Arthur, eu estava completamente sozinho com a criatura. Seus olhos vermelho-fogo olhavam diretamente para mim, como se tentasse sugar minha alma. Tentei me mover, não consegui, estava completamente paralisado. O monstro me atacou, suas garras perfuraram meu peito enquanto ela soltava um grito de... agonia?
Finalmente acordei, o ambiente estava muito mais gelado do que antes.
Estremeci com frio.
Olhei para os lados, Joui e Arthur também estavam acordados, pareciam tão assustados quando eu.
Engoli em seco.
– Vocês também escutaram, não é?
– Sim – a voz de Arthur quase não saiu. – Acham melhor... vermos o que aconteceu?
– Tá doido? – disse eu. – É assim que as pessoas morrem nos filmes de terror, eu que não vou sair daqui!
– Pelo amor, a vida não é um filme! – Joui se levantou da cama. – Alguém pode estar machucado... Bem machucado, é melhor verificarmos.
– Pra quê? Esse grito deve ter acordado o internato inteiro, os professores já devem estar procurando a fonte do barulho – disse enquanto puxava minha coberta, me aconchegando na cama.
Joui arrancou a coberta de mim.
– Ei! Tá frio! – reclamei.
– Tá ouvindo algum outras pessoas, por acaso? – disse Joui. – Não tem ninguém indo ajudar!
– Essa escola é enorme, o dormitório dos professores nem fica nesse andar – insisti.
– Então, tá. Arthur-San, o que você acha? – Joui se virou para o moreno. – A gente vai ou não?
Ele arregalou os olhos.
– Você querem que eu decida? – perguntou Arthur.
Eu e Joui fizemos que sim com a cabeça, esperando alguma resposta.
O moreno ficou em silêncio por um momento.
– Acho melhor verificarmos. A pessoa parecia estar sofrendo.
– Viu? Ele concordou, agora levanta daí! – Joui puxou levemente meu braço na intenção de me colocar de pé.
Joguei meu peso para trás resmungando.
– Vai, Cesar, por favor! – pediu Arthur.
– Se você não sair dessa cama eu vou te carregar daqui até a porta – ameaçou Joui.
Não seria ruim. Pensei e me culpei logo depois por ter realmente cogitado deixar isso acontecer. Esse tipo de pensamento em relação ao asiático tinha começado a me ocorrer com mais frequência, não entendia o porque disso.
Me levantei e fui pegar um casaco no armário.
– Vamo logo.
Descemos a escada para o corredor principal. O ambiente estava extremamente escuro, tivemos que logar as lanternas do celular. A maioria das salas estavam vazias e escuras, mas a porta da biblioteca estava entreaberta e de lá saía uma espessa névoa.
– Já me arrependi da minha decisão – disse Arthur. – E agora?
– Agora a gente da meia volta direto para o dormitório. – disse eu. – Olha o estado desse lugar! Não dá para enchergar nada, é um convite para a morte certa.
– Deixa de besteira, essas coisas só acontecem em filmes – retrucou Joui.
– Eu achava que monstros com asas de morcego e olhos vermelhos também só existissem na ficção – respondi.
– Para de usar bons argumentos contra mim! – Joui apontou a lanterna de seu celular em direção à porta.
– Depois que for atacado por um fantasma não reclama – brinquei.
– De onde será que está vindo essa névoa toda? – se questionou Arthur.
– Eu não sei e nem quero descobrir – cruzei os braços impaciente.
Entramos na biblioteca, a lanterna serviu de nada, não dava para ver do mesmo jeito. Agarrei um braço de Arthur e outro de Joui para não nos perdemos.
Fomos andando pelos cantos, nos guiando pelas estantes, alguns livros caíram no processo.
– Olá! Viemos ajudar! Está machucado? – Arthur tentava buscar a suposta pessoa em perigo enquanto andávamos.
Apoiei minha mão em uma estante e quase caí, aquilo não era uma estante, era uma entrada, uma porta de metal. A névoa vinha lá de dentro, como se alguém tivesse ligado uma máquina de fumaça, percebi também uma escada que dava diretamente para a escuridão, não tinha como enchergar nada.
– Agora seria uma boa hora para sair daqui – murmurei.
– Mas o quê? – perguntou Joui – Como nunca vimos isso aqui antes?
– Acho que comecei a concordar com o Cesinha, vamo embora, por favor – disse Arthur.
– Shhh! – pedi silêncio.
Ouvi um barulho vindo da escadaria: passos. Me afastei da entrada. Agachei no chão, levando Arthur e Joui comigo. Fomos nos arrastando para trás de uma estante.
Consegui ver uma silhueta em meio a espessa névoa saindo do local, não demorei para reconheci quem estava lá.
– Gabriel?
As roupas do garoto estavam completamente ensanguentadas, ele tinha uma lança em sua mão, a ponta estava com tanto sangue quando suas roupas. Quando nos viu, ele travou.
– Não, não... Não era para isso estar acontecendo – ele olhou para trás.
– O que você está fazendo aqui? – minhas pernas fraquejaram ao ver todo aquele sangue.
– O que vocês estão fazendo aqui? – ele gritou de volta.
– Ouvimos um grito... Viemos ver se estava tudo bem – Arthur respondeu.
– Vocês conseguiram ouvir... – ele nos olhou em choque. – Não, não está nada bem e vai ficar pior se vocês não me ajudarem a fechar essa merda de bunker!
Ao longe, ecoou um som estridente, parecido com o grito que ouvimos no dormitório.
– Rápido! Ela tá vindo!
Nem questionamos. Juntos, empurramos a porta até que estivesse fechada. Gabriel se apresou a tirar um livro muito do esquisito de sua mochila, - parecia antigo, sua capa preta tinha um grande símbolo em vermelho - o colocou na estante, ouvi um click, ele retirou o livro logo depois e o guardou.
– Ainda não acabou. É só questão de tempo até ela conseguir atravessar. Temos que sair daqui. A propósito, algum de vocês tem um esqueiro?
– Claro que não! – respondeu Joui.
– E quem é ela? – perguntei.
– Porque você tá... desse jeito? – perguntou Arthur indicando as manchas de sangue.
– Depois que estivermos seguros eu respondo o que vocês quiserem. Por agora o que precisam saber é que eu sou a Agatha, não o Gabriel.
_ Como assim você é a Agatha? – perguntei. – Do que você está falando?
– Precisamos sairmos daqui, tipo, agora, o que era meu corpo vai subir e matar todos nós – ele falou isso muito rápido.
– Como assim? – perguntou Joui desconfiado. – O que aconteceu?
– Eu troquei de corpo com o Gabriel. Sei que parece absurdo mas vocês precisam acreditar. Olha, eu lembro da professora Fátima, ela era um monstro, como esse que está prestes a nos fazer em pedacinhos. Então, a menos que queiram ter uma morte lenta e dolorosa, preciso que venham comigo.
Olhei para Joui e Arthur sem saber o que fazer. Tivemos uma conversa silenciosa, o olhar deles já dizia tudo. Não temos escolha, temos que confiar.
– Joui, você ainda está com a espada? – perguntou Agatha.
– Sim... – ele colou a mão no bolso. – Espera, como você sabe...
– Ótimo, pode precisar dela. – disse Agatha.
Ela nos guiou até o lado de fora da bilhioteca e trancou a porta.
– Eu vou levar vocês para um lugar seguro, para um... acampamento para pessoas especiais como nós.
– Especiais? – perguntei.
– Sim. – ela respondeu. – Eu sou como vocês, eu vejo as mesmas coisas estranhas que vocês vem, não é qualquer um que consegue ver através da Névoa, muito menos enchergá-la fisicamente, isso é raro. E ruim, significa que eu deveria ter levado vocês para lá antes... Se o sr. Veríssimo não tivesse decidido esperar mais um pouco...
– O que o sr. Veríssimo tem haver com isso? – perguntei.
– Como eu disse, quando estivermos seguros, responderei as respostas que quiserem.
Ouvi vindo de dentro da biblioteca algo sendo sendo arrebentado seguido por um grito ensurdecedor, tive que tapar meus ouvidos.
– Me sigam! – corremos pelo corredor principal em direção ao gabinete dos professores. A maioria das luzes estavam apagadas, por excessão de uma, Agatha entrou sem bater.
– Sr. Veríssimo. Temos problemas, você estava errado, não tínhamos mais tempo. Eu tentei agir por conta própria e... eu acabei invocando uma Degolificada!
O homem estava sentado em sua cadeira, examinando documentos em cima da mesa. Ele nos observou por um tempo antes de falar algo.
– Eu sinto muito por não ter te ouvido, Agatha. Sinto muito pela confusão, meninos. Precisamos voltar para o acampamento. – ele tomou a liderança do grupo.
Sr. Veríssimo passou a nos guiar, descemos as escadas que davam para o pátio esterno do campus, por todo o caminho, continuei o ouvindo o grito, em algum momento,escutei o som do que eu tinha certeza que era a porta da biblioteca sendo arrombada. Apertei o passo.
Fomos até o portão principal.
– Está trancado – observou Arthur.
Sr. Veríssimo tirou uma rolho de chaves do bolso, escolheu a maior delas, a encaixou na fechadura e destrancou. Agatha se jogou contra o portão para abri-lo.
Olhei para trás receoso e me arrependi instantaneamente.
Na entrada, vi uma menina adolescente esguia com cabelos pretos, lisos e longos, cobrindo o seu rosto. Sua coluna era retorcida e invertia na área do abdômen, os braços e as pernas pareciam pendurar de seu corpo enquanto ela flutuava lentamente em nossa direção, deixando um rastro da mesma névoa contida no bunker. Ela não parecia exatamente sólida, de vez enquanto ela ficava... transparente.
– Tá aí o meu corpo. – Agatha seguiu até o outro lado da calçada.
– Por aqui, rápido! – disse sr. Veríssimo.
Viramos a rua e fomos em direção ao único carro do local: uma mini van.
– Entrem! – sr. Veríssimo abriu as portas.
Novamente, não questionamos, fizemos o que ele disse. Veríssimo ligou o carro e pisou no acelerador. Não fazia ideia para onde estávamos indo.
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Ai, ai essa Agatha... o que vocês acham da narração intercalada entre Joui, Cesar e Arthur?
Acho divertido fazer em primeira pessoa, é sempre um desafio escrever de maneira diferente para cada perspectiva.
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O Segredo No Acampamento
FanfictionDeuses são reais. Todas as criaturas mitológicas são protegidas aos olhos mortais através da Névoa, porém, tudo tem suas brechas: semideuses, os descentes meio mortais dos deuses gregos. Seres extremamente poderosos e ao mesmo tempo tão vulneráveis...