Capítulo 4

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(AGORA)

Certa vez, Patrick me perguntou por que eu tomava banhos tão demorados. Não me lembro da desculpa que dei. Tenho certeza de que disse que era relaxante, ou que a água quente fazia bem para minha pele. Mas tomo banhos demorados porque é o único momento em que me permito viver o luto.

Eu me sinto fraca por precisar do luto quando ninguém morreu. Não faz sentido que eu sofra tanto por aqueles que sequer existiram.
Já estou no banho há meia hora. Quando acordei hoje de manhã, presumi, de maneira equivocada, que tomaria uma chuveirada rápida, sem sofrimento.

Mas tudo mudou quando vi o sangue. Não deveria me espantar. Acontece todo mês. Aconteceu todos os meses desde que completei 12 anos.
Estou encostada na parede do boxe, deixando o jato de água correr pelo rosto. O fluxo dilui minhas lágrimas e faz com que eu me sinta menos patética.

Estou me maquiando agora.
Às vezes isso acontece. Em um segundo estou no chuveiro, no seguinte não mais. Eu me perco na dor. Fico tão desnorteada que, quando saio da escuridão, estou em outro lugar. Dessa vez, o outro lugar sou eu, nua, em frente ao espelho do banheiro.
Passo o batom no lábio inferior, depois no de cima. Deixo-o de lado e observo meu reflexo.

Meus olhos estão avermelhados, mas a maquiagem está perfeita, o cabelo, preso, minhas roupas, dobradas de maneira ordenada no balcão. Observo também o reflexo do meu corpo no espelho, cobrindo os seios com as mãos. Fisicamente, pareço saudável. Meus quadris são largos, minha barriga, chapada, os seios, normais e firmes. Quando os homens olham para mim, às vezes, seus olhos se demoram.

Mas, por dentro, não sou nada atraente. No íntimo não tenho apelo, segundo os padrões da Mãe Natureza, porque não possuo um sistema reprodutivo operante. Afinal, a reprodução é o motivo da nossa existência. A reprodução é necessária para completar o ciclo da vida. Nascemos, nos  reproduzimos, criamos nossos filhos, morremos, nossos filhos se reproduzem, criam seus filhos, eles morrem. Geração após geração de nascimento, vida e morte.

Um lindo ciclo, jamais destinado a ser rompido.
No entanto... Eu sou a ruptura.
Eu nasci. É tudo de que sou capaz até morrer. Estou à margem do ciclo da vida.

Visto as roupas, cobrindo o corpo que nos frustrou repetidas vezes.
Entro na cozinha e encontro Patrick parado em frente à cafeteira. Ele olha para mim, e eu não quero que ele descubra sobre o sangue ou o choro no chuveiro, então cometo o erro de sorrir.

Rapidamente, arranco o sorriso do rosto, mas é tarde demais. Ele acha que é um dia bom. Meu sorriso lhe deu esperança. Ele caminha em minha direção porque, como uma idiota, me esqueci de erguer meus escudos. Em geral, faço questão de manter as mãos ocupadas com uma bolsa, uma bebida,ou um casaco. Às vezes tudo isso ao mesmo tempo.

Hoje, não tenho nada com que me defender de seu amor, então ele me dá um abraço de bom-dia. Sou forçada a retribuir.

Meu rosto se encaixa perfeitamente na curva de seu pescoço. Seus braços envolvem com perfeição minha cintura. Quero pressionar os lábios na sua pele e sentir os arrepios na língua. Mas, se fizer isso, sei o que vai acontecer.

Seus dedos roçariam minha cintura.
Sua boca, quente e úmida, encontraria a minha.
Suas mãos tirariam minhas roupas.
Ele estaria dentro de mim.
Ele faria amor comigo.
E, quando acabasse, eu me encheria de esperança.
E, então, toda aquela esperança eventualmente escoaria com o sangue.

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