Rafaella

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Um ano e meio atrás, minha mãe me ligou numa quarta-feira e me perguntou se eu queria ir tomar um café com ela. Era um convite incomum. Não que eu não goste de café ou da minha mãe. Mas, além de viver em um bairro distante do centro, ela também trabalha lá, como professora de ciências do ensino médio. Então não havia nenhuma razão para vir até a cidade em uma quarta-feira qualquer, mas por algum motivo isso não me acendeu nenhum sinal de alerta.

Deveria ter.

Ela estava com câncer.

Ficamos sentadas naquele café durante duas horas, mas, quando saímos, aquela única palavra reverberava na minha mente.

Mais tarde, bem mais tarde, eu pensaria nos detalhes.

Nódulo. Estágio três. Quimioterapia. Radiação. Mastectomia. Prognóstico. Todas palavras horríveis, derivadas daquele único termo destrutivo que começava com “c”.

O mês seguinte foi péssimo, como seria de esperar. Eu chorava. Muito. Para piorar, meu pai também. Minha mãe não, o que só servia para tornar tudo ainda mais aflitivo, porque era ela que estava doente, e aguentava bem mais firme que a gente.

Mamãe perdeu os cabelos. Ficou enjoada e fragilizada, mas manteve a força mental. Eu ia visitá-la pelo menos três vezes por semana, na maioria das vezes mais, e nem nos piores dias ela deixou de me receber com um sorriso.

Eu quis raspar a cabeça em solidariedade, mas ela não podia nem me ouvir falar a respeito. Foi dela que eu puxei os meus cabelos, e foi ela que fez questão de que eu mantivesse os meus compridos, para se lembrar dos dela enquanto não cresciam.

Durante muitas noites só ficávamos sentadas em silêncio na sala com uma caneca de chá, ouvindo suas cantoras de jazz favoritas enquanto fazia tranças nos meus cabelos — eu no chão, ela no sofá, usando uma de suas várias echarpes de cores vivas para esconder o couro cabeludo.

A coisa piorou antes de melhorar. Nas consultas médicas, sempre muito sombrias, os prognósticos apontavam um fio de esperança e nada além disso. Uma mastectomia dupla em que seus seios seriam substituídos por próteses que fariam parecer que tudo estava normal, quando não estava.

E então…

E então minha mãe melhorou.

Está em remissão há cinco meses. Por ser tão cheia de vida, parece que o pior ficou para trás há cinco anos.

Seus cabelos ainda estão curtos, mas bonitos. Seu corpo está mais forte a cada dia. Tanto que vamos encarar uma corrida de cinco quilômetros juntas no mês que vem — um evento pelo tratamento do câncer de mama, em que ela vai usar orgulhosamente um broche indicando que é uma sobrevivente. Eu não poderia estar mais orgulhosa.

Durante os piores momentos da doença dela, sempre soube que não estava sozinha, mas tive que me esforçar para não acabar desmoronando. Quando chorava, era tarde da noite, sem ninguém por perto. Nem Bruna nem Bianca — apesar de que, como dividimos a casa, ela sabia que eu estava chorando. E eu sabia que ela sabia, porque às vezes a encontrava dormindo na porta do meu quarto pela manhã, como se tivesse montado acampamento lá para me proteger em meu sofrimento.

Não que Bruna não tenha sido exemplar. Ela ficou do meu lado o tempo todo. Mas foi Bianca quem sofreu junto comigo.
Ela sentiu a doença na pele, como se minha mãe e meu pai fossem seus pais também.
Já encontrei os pais de Bianca uma porção de vezes. Em visitas durante a faculdade, na formatura, e coisas do tipo. Até passei um fim de semana na casa do pai dela durante as férias de verão. Eles são legais. A mãe dela também, do seu jeito controlador e intenso. Mas meus pais são o máximo . Minha casa era o lugar onde as outras crianças queriam ir fazer os trabalhos, onde o time de vôlei queria fazer as festas do pijama. Não porque eram permissivos, mas porque falavam comigo e com meus amigos como se fôssemos pessoas , não crianças.
E nenhum dos meus amigos se beneficiou tanto desse jeito de ser deles quanto Bianca.

Apenas amigas?Onde histórias criam vida. Descubra agora