Rafaella

771 84 14
                                    

Seja lá qual for o bicho esquisito que mordeu Bianca quando eu estava lá fora com meu pai, o efeito da picada passa quando chegamos à sobremesa: uma deliciosa torta de frutas vermelhas locais com sorvete de creme. Como duas fatias e não me sinto nem remotamente culpada.
Quando terminamos de lavar a louça e meus pais vão para a cama, estou contente como não me sinto há um bom tempo.

“Quer montar um quebra-cabeça?”,
pergunto.

Bianca solta um grunhido. “Você e seus quebra-cabeças. Que tal uma caminhada na praia?”

Olho lá para fora com uma expressão de ceticismo.

“Uma caminhada na praia totalmente escura à beira de um mar bravo no meio da chuva em um frio de matar?”, pergunto.

Ela sorri. “Sim. Exatamente isso.”

“Eu topo.”

Cinco minutos depois, estamos cobertas dos pés à cabeça — eu com o moletom da faculdade que roubei de Bianca, ela com sua camisa de flanela. Percorremos a curta distância até a praia. Por sorte a chuva parece ter dado lugar a um sereno gelado.
Não está tão frio quanto eu esperava. Como nada me deixa mais irritada que areia nos sapatos, tiro os tênis e as meias e deixo em cima de uma pedra grande e inconfundível para poder encontrar depois. Bianca faz o mesmo, e ambas dobramos a calça até o meio da panturrilha. Sinto a areia gelada sob os pés, mas de um jeito gostoso.

Sempre adorei as viagens em família para Cannon Beach. É um dos lugares mais bonitos do mundo, com ondas bravas, areia fofa e o rochedo Haystack pairando sobre a praia. A alta temporada pode ser no verão, com fogueiras na praia, sorvete de casquinha e o sol brilhando no céu, mas sempre gostei mais de vir no inverno. Poucas coisas são melhores do que ficar encolhidinha debaixo das cobertas com um bom livro enquanto chove forte lá fora, ou então assar marshmallows na lareira. Além de montar quebra-cabeças, claro. Mas a melhor parte é ter a praia só para você. Bom. Para você e sua melhor amiga, no caso.

Bianca parece ser da mesma opinião, porque respira fundo. Quase consigo senti-la relaxar enquanto caminha ao meu lado. A maré está baixa, o que faz a faixa de areia parecer infinita. Em uma concordância silenciosa, viramos para a esquerda, embora o lado não faça diferença. Nossa intenção não é chegar a lugar nenhum.

Caminhamos em silêncio por vários minutos antes que eu puxe conversa. “Então, o que foi que minha mãe falou que deixou você assustada?”, pergunto.

Ela fica em silêncio por um instante, acho que tentando decidir se me conta ou não. Ou
quanto me conta.

“Sua mãe está preocupada com você”, ela diz por fim.

Viro para ela, surpresa. “Sério? E eu achando que vinha novidade quente por aí…”

Bianca não faz uma piadinha em resposta, como eu esperava. Só enfia a mão nos bolsos e olha para o céu por um momento. “Ela acha que você não está lidando bem com o término.”

Abro a boca para responder, mas fecho em seguida. É um desdobramento que não esperava. Na maior parte do tempo, sinto que estou na mesma sintonia que minha mãe, mas essa revelação me pega desprevenida.

“Ela falou isso mesmo?”

Bianca encolhe os ombros. “Veio com um papo sobre sentimentos reprimidos e blá-blá-blá.”

Enfio as mãos nos bolsos e reflito. Sinceramente, quase não penso em Bruna. Ou sobre o término. Mas sendo bem sincera mesmo… acho que me proíbo de fazer isso.
Quando alguma coisa me faz lembrar de Bruna, logo penso em como me senti mal ao levar um pé na bunda, e meu cérebro meio que muda de assunto, por ser doloroso demais.

Apenas amigas?Onde histórias criam vida. Descubra agora