28 - Só uma vez

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-O que você está vendo?!
Magnus se sobressaltou quando a voz de Ragnor soou alta e mal humorada em seus ouvidos. Ele já tinha até esquecido onde estava, tudo por causa daqueles pensamentos inquietos que lhe tiravam a concentração.
Encarou o amigo sentindo que havia uma interrogação enorme no centro de sua testa. Ragnor o encarou como se ele tivesse chifres saindo da testa - o que não deveria ser grande coisa, visto que alguns feiticeiros, incluindo o próprio Ragnor, os tinha - antes de rolar os olhos para trás. A pele verde parecendo um pouco mais verde pela luz do fim da tarde.
Nenhum deles dois precisava estar ali, mas Catarina parecia fazer um pouco de tudo com tanta alegria e disposição que ele se via querendo fazer algo do tipo também.
-O que? - perguntou, antes de olhar para a frente mais uma vez, em direção ao pôr do sol. Era bonito até, apesar da cor estar um pouco distorcida pelas proteções que tinham acabado de conferir.
Ele estava mais distraído do que o normal, tinha que admitir.
-Você sentou nesse lugar há exatamente 1 hora atrás e até agora não se moveu. Fica encarando como se fosse aparecer alguma coisa terrível em sua frente.
Rolou os olhos e se apoiou nos braços, inclinando o corpo para trás de uma forma que deveria parecer relaxada, mas estava sentado no chão morno debaixo do que restava de sol e suas costas doíam demais depois do dia de trabalho.
Estava exausto e algumas partes de seu corpo ainda doíam depois do treinamento com Alexander.
Queria muito ir deitar em sua cama e apenas tirar um cochilo, mas sabia que não ia conseguir dormir tão cedo.
-Eu estava pensando - falou a contragosto. Céus, uma massagem nas costas era tudo o que ele podia querer.
-Pensando... sei bem. Se você pensasse em si mesmo como pensa nesse caçador, com certeza não teria passado por metade do que passou a vida inteira. Menos cicatrizes pra curar.
-Ouch! - Magnus colocou a mão sobre o próprio, sentindo um aperto real alí. Ragnor não estava mentindo, obviamente, mas não significava que era gentil jogar coisas em sua cara desse jeito. Não que Ragnor já tivesse sido gentil alguma vez - quem disse que estava pensando no Alec?! Poderia estar pensando em qualquer coisa, até no que vou fazer quando sairmos daqui. Não podemos simplesmente nos esconder aqui e agir como se não estivesse acontecendo um caos lá fora.
Falou desafiadoramente.
-Dá pra perceber pela sua cara que é o caçador quem está em sua cabeça. Você fica com rugas entre as sobrancelhas e você fica sorrindo como um bobo. E o canto de sua boca treme como se você precisasse controlar.
Magnus cobriu o próprio rosto, desabando para trás no chão sujo e sentindo uma nuvem incômoda de poeira surgir ao seu redor. Repreendeu a si mesmo por estar sujando as roupas que ele mesmo teria que lavar.
Bem... ele tinha magia para isso de qualquer forma.
-Isso não pode estar acontecendo - lamentou - não posso estar... eu pensei que já tinha aprendido mais do que isso. Eu tenho 800 anos, por favor!
-Você ainda é um humano - Ragnor falou, fazendo Magnus encará-lo com ironia - Não exatamente - seu amigo se rendeu com um erguer de mãos - sei que estamos longe de sermos mundanos, mas talvez sejamos mais próximos do que imaginamos. Nós temos emoções também. Podemos ter sentimentos. Se está apaixonado pelo garoto precisa encarar isso.
-Olhá só! Meu querido amigo verde em seus breves lapsos de humanidade - ele brincou, porque era mais fácil assim do que realmente falar do que estava sentindo.
Seu coração parecia dobrar de tamanho só em pensar no rosto de Alec tão perto naquela manhã. Aqueles olhos tão perfeitos cheios de esperança, e depois cheios de decepção.
-Não mude de assunto. Você sabe. Não é mais uma criança.
-Ele é.
-Ele é um caçador, Magnus. É um adulto, mesmo que não se compare aos seus anos de vida. Sabe o que está fazendo. Dá pra ver que ele gosta de você. E você retribui.
Magnus bufou em desgosto.
Se fosse tão simples assim.
Em algum momento eles teriam que fazer algo em relação ao que aqueles submundanos e caçadores idiotas estavam fazendo com o mundo. Eles não ficariam ali para sempre. Uma hora Alec se depararia com a realidade de se envolver com um submundano. Ali eles eram todos aliados, mas não significava que seriam todos amigos próximos, submundanos e caçadores vivendo como criaturas iguais. Porque não eram. Eram o extremo um do outro desde suas origens.
Ele sabia o que acontecia com caçadores que se envolviam com submundanos. Não houve tantos relatos disso, mas ele conhecia alguns.
Nunca acabava bem.
Nunca.
-Isso é uma droga.
-Eu posso imaginar. Mas você nunca foi um covarde.
Talvez não, mas quando o assunto era Alexander ele nem se reconhecia. Pela manhã, covarde era tudo o que ele tinha sido quando se afastou de Alexander, dizendo que aquele não era o momento para pensar naquilo.
-O tempo é diferente para nós dois.
-E você está inventando desculpas - Ele tinha razão - Nunca gostei de caçadores, mas sei que alguns podem ser decentes. Seu Alexander é um deles.
Encarou Ragnor com surpresa, mas seu amigo não o encarava de volta. O que Alec tinha feito para conquistar o coração de gelo de seu amigo?
Mas se parasse para dar atenção aos conselhos de seus amigos pelo menos uma vez, ele perceberia que dizia estar dando um tempo a Alec, para ele entender o que era aquilo que acontecia entre eles, para que o caçador percebesse se aquilo era só um capricho jovem. De qualquer forma, era inegável que havia algo mais alí. Mas ele só estava assustado demais para encarar que Ragnor estava certo. Ele tinha sentimentos por Alexander. Só estava tentando enganar a si mesmo porque não seria fácil. Talvez ele acabasse com seu coração partido mais uma vez.
-Bem - Ragnor levantou e sacudiu a poeira das roupas - estou indo. Tem coisas que nem eu posso enfiar nessa cabeça dura. Você nunca faz nada além do que quer e quando quer - ele olhou para alguma coisa acima de sua cabeça e Magnus acompanhou o olhar. Alec estava parado na entrada, olhando diretamente para ele, e um pequeno sorriso brotou no rosto do caçador quando percebeu que tinha sido visto - ele é um bom homem. Você merece, depois de tudo.
Ragnor se afastou, parou quando chegou ao lado de Alec e falou algo que o fez rir antes de entrar.
Alec se aproximou logo depois, tomando o lugar em que Ranor estava sentado antes, encarando o sol, que agora estava quase completamente desaparecido do céu. A ausência de redes de iluminação tornava possível ver uma infinidade de estrelas acima deles.
-É lindo - Alec murmurou. Ele parecia realmente fascinado - pensei que nunca veria um céu tão lindo quanto o de Idris, mas acho que esse pôr do sol é perfeitamente capaz de competir.
Ele nunca tinha ido a Idris. Era proibido para qualquer submundano.
Alec também não poderia voltar depois de ter largado tudo para salvá-lo.
Ele queria muito se desculpar e conversar sobre isso, sobre como Alec estava se sentindo com toda a mudança que tinha acontecido na vida dele. Ou talvez sobre aquela manhã...
Mas quando encarou Alec ele parecia tão leve e confortável que não quis fazer nada que pudesse perturbá-lo.
-Tenho que concordar com você, Alexander. Uma das coisas mais lindas que já vi.
Alec sorriu para ele e Magnus sentiu quando algo se instalou entre eles. Uma energia densa, quase palpável. Fechou os olhos, suspirando.
Fazia tanto tempo que não se sentia tão cheio de emoções mundanas. Nem se lembrava da última vez que sua respiração ficou tão pesada somente por estar perto de alguém.
Quando abriu os olhos novamente, Alec estava mais perto, ainda o observando, os braços quase se encostando e os olhos deles tinham a mesma fascinação de quando encarava o céu.
-Acho que vamos perder o jantar - Alec sussurrou, e ele imaginou que fosse para não perturbar o momento.
-Acho que não me importo. Você se importa? - perguntou no mesmo tom.
-Posso lidar com isso - Alec respondeu.
Eles voltaram a se acomodar, e mesmo que aquele lugar fosse duro e desconfortável, ele não queria sair. Se viu querendo sentir.
Ele queria muito sentir.
Ele sabia que tendia a ser muito intenso sempre que se permitia, por isso mantinha tudo sob controle o máximo possível. Mas Alec já tinha feito algo com ele, algo que fazia seus sentimentos escaparem como ondas, transbordando.
Sim, Alec tinha feito algo dentro dele mudar.
Ele podia sentir vindo à tona, subindo à superfície. Leve e denso ao mesmo tempo. Fácil, forte, quente, sufocante e libertador.
Por Lilith, ele tinha esquecido como era estar apaixonado, mas sabia que podia ser muito bom.
Apenas fechou os olhos mais uma vez e estalou os dedos, tirando o pó debaixo deles. Com mais uma série de gestos, trouxe o cobertor da cama de Ragnor, torcendo para que ele não estivesse no quarto para ver. Não tornava mais confortável, mas diminuiria o frio se eles ainda demorassem a entrar.
Ele não queria entrar nem mesmo pelo jantar. Só queria aproveitar um pouco de calmaria e silêncio. Assim seria mais fácil acreditar que ele não tinha coisas a fazer, decisões a tomar.
Logo que ele e Alexander se afastaram pela tarde, Charlotte tinha chamado alguns deles para ir até Londres, Nova York e Madrid para investigar, e logo depois mandou reforçar as barreiras; Isso significava que o que estava acontecendo não era bom.
Era um mundo arriscado esse que viviam agora. Mais do que nunca. A qualquer momento as desavenças poderiam explodir em um novo conflito e todas aquelas pessoas, aquelas que se afastaram de ambos lados, poderiam simplesmente ser massacradas. Catarina, Ragnor, ele mesmo... Alexander, que sequer tinha escolhido estar ali pelos ideais...
De certa forma ele se sentia responsável. Aldous quem começou tudo. E ele estava ao lado de Aldous quando tudo fugiu do controle.
-Alexander... - ele chamou sem nem saber o que queria dizer. Alec o encarou com atenção, esperando por algo. Algo que ele não sabia o que era - Sinto muito por ter sido grosseiro com você essa tarde.
-Você não foi - o caçador respondeu, inclinando o corpo em sua direção. Parecia estar analisando suas reações - Você só me disse que ainda não era hora. Talvez realmente não fosse. Eu acabei me precipitando, porque não sei quanto tempo... quanto tempo ainda resta.
Então Alec sentia aquilo tambem. A iminência do desastre maior.
-Eu... - ele gostaria de poder dizer que queria aquilo também, mesmo que apenas para saber no que aquilo resultaria.
-Eu me precipitei porque recebi um chamado.
-Charlotte deu mais responsabilidades a você também? Ela parece estar se preparado para algo, mas ainda não nos disse o que. Mandou feiticeiros e fadas essa tarde.
Alec acenou em resposta.
-Ela também quer saber o que está acontecendo do nosso lado... do lado dos caçadores. Jace, eu e mais alguns caçadores vamos até a fronteira de Idris amanhã em uma missão. Eu não sei o que nos espera, então... - ele deu de ombros, e parecia que já não se importava, como se o que estava pensando fosse algo fora de seu alcance - pensei que não sei o quão arriscado vai ser.
-E queria ter alguma segurança. Alguma coisa a que se apegar - deduziu. Não era incomum. Conheceu mundanos que fizeram a mesma coisa quando enviados para casa sem perspectiva de volta - um motivo para voltar.
Alec não respondeu de imediato. Ele encarou o horizonte por um momento...
Já era noite e o vento começava a soprar mais forte, mas ainda era suportável.
-Não exatamente. Mas acho que é uma coisa que posso dizer depois. Se voltar.
-Quando voltar - Magnus imterrompeu - porque você vai voltar.
Alec não protestou. Deu um aceno e sorriu, um sorriso pequeno e gentil que ele estava vendo com um pouco mais de frequência agora.
-É a fronteira. Caçadores continuam chegando. Isso significa que eles devem estar mais desconfiados agora. Vão estar mais atentos e preparados.
Sim. Não seria nada fácil.
Alec estava certo. Ele podia não voltar. Se ele não voltasse... bem. Ele não pensaria naquilo, porque não era um possibilidade.
-Me dê sua mão, caçador - Magnus pediu com um suspiro, mas prendeu a respiração quando Alec fez o que ele pediu sem hesitar. Tirou um anel do próprio dedo e o encantou. Eles viram juntos quando seu anel brilho com a magia. Ele sussurrou palavras que lhe eram familiares, mas que para Alec poderiam ser bastante estranhas. Encarou-o esperando por espanto ou repulsa, mas só havia curiosidade. Continuou então. Suas energias estavam quase acabando por causa de todo o esforço que fez durante o dia, mas ainda assim usou sua ultima reserva. Em seguida, colocou o anel no dedo de Alec. No dedo do meio onde não seria confundido.
Alexander franziu as sobrancelhas o encarando de um jeito que o fazia parecer muito um menino.
-Coloquei proteções. Não vai ser fácil atingir você - explicou.
Ele concordou.
-Muito obrigado.
-Sempre que precisar.
Era o mínimo que podia fazer. Oferecer qualquer coisa que seu poder podia proporcionar. Proteger, não atacar. Cuidar, não ferir.
Se deu conta que Alec não tirou a mão da sua, pelo contrário. Apertou mais os dedos ao redor dos seus.
-Eu queria muito beijar voê agora - Alec murmurou, alheio como se nem tivesse consciência de que estava falando em voz alta.
Escondeu um sorriso.
Deixou que seus lábios alcançassem Alexander na bochecha antes de deixar um selinho rápido na boca alheia.
Apesar de surpreso, Alec não recuou.
-Mas você tinha dito...
-Eu sei o que disse. Mantenho o que disse - Mas também não era como se nunca tivessem se beijado antes. E não era como se não quisesse. Não era como se fosse indiferente - isso significa que eu me importo com você. E que quando você voltar... quando você voltar, nós podemos conversar abertamente sobre isso.
Por hora, achava que podia ceder e aproveitar. Alexander iria embora sem saber quando tempo aquela missão demoraria. Era uma forma de garantir a si mesmo que ficaria tudo bem.
Daria tudo certo. Alec é bom no que faz.
Ele sequer teve tempo para ver a reação de Alexander quando foi praticamente atacado, Alexander se curvou para alcançá-lo mais uma vez enquanto o rodeava com os braços. Ele era firme e gentil. Magnus notou com alguma simpatia que a respiração dele estava um pouco trêmula, mas parou de pensar pouco tempo depois.
"Isso ainda é ir com calma", disse a si mesmo.
Não significava que estavam juntos.
Era só um beijo - um beijo particularmente bom - mas um beijo de despedida.

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