Ser Humano

17 0 0
                                    

Ignorante ante tamanha resolução, V se relegou a quietude e se deu conta... Existe algo mais humano que admitir suas fragilidades?

[V centric | V e Diva | Fluffy]

━────────────────━

Tudo vai desaparecer. O céu, as estrelas salpicadas pelo manto escuro e a reluzente lua prateada que banhava o mundo dos homens. V não conseguia deixar de pensar no quanto a humanidade esteve próxima do fim e como, em todas essas ocasiões, um salvador emergia do vazio para brandir a espada em prol do bem desses seres e, ainda que tivessem superado tais catástrofes ao longo da história, permaneciam cativos no ciclo de destruição que apenas se adiava conforme os anos passavam.

As marcas de uma guerra nunca se cicatrizariam.

Estava assustado?

Deslizou a mão pelos cabelos escuros, sentindo a textura suave escorrer por entre seus dedos enquanto inúmeras questões povoavam sua mente. Era difícil abandonar a preocupação quando todo seu corpo já evidenciava os primeiros sinais de um colapso. Não lembrava da última vez que dormiu como deveria e essa tola decisão lhe custou caro, muito mais do que estava disposto a pagar.

Seus dedos delgados apertaram o apoio da bengala com força suficiente para empalidecerem mais do que sua falta de cor seria capaz de exibir. O objeto cravou sob a superfície da pele sem, no entanto, maculá-la com seu material frio e sólido.

Não obstante a sua crescente frustração, escutou, através da ligação forjada pelo contrato, o ruído de Griffon mesmo que fisicamente a ave demoníaca se encontrasse reclusa em sua tatuagem correspondente, seus pensamentos se faziam bem audíveis para o poeta em conflito. Não havia jocosidade no timbre do demônio alado, quase soava como condescendência.

"Vai ficar chorando pelos cantos?", Griffon indagou. "Pare de ficar comocionado com tudo que acontece, você não quer viver?" V suspirou longamente.

"Qual é, Shakespeare, você está há dias assim. Se não se cuidar vai ficar mais fracote do que já é, sem ofensa."

— Dispenso seus comentários. — cortou o diálogo com certa inquietação se deslocando pelo seu peito, até uma batida ao seu lado, provocado pela colisão de dois materiais mais resistentes, o sacudiu de volta para a realidade inóspita.

Assomou a cabeça sobre a borda do telhado tendo cuidado ao pôr o peso do corpo sobre a estrutura pouco confiável e viu a figura feminina subir as escadas que plantou ali para chegar em seu local de isolamento pouco convencional.

Claro, ela; sua missão.

Diva escalou um pouco desengonçada até onde se encontrava exilado. V não se relacionou muito com a jovem à princípio da jornada compartilhada, mas se tinha alguma coisa especial na dinâmica que desenvolveram no período em que se uniram, certamente, seria que o silêncio nunca se tornava um obstáculo no qual se constrangiam. Poderiam simplesmente dividir o espaço sem a necessidade de falarem e, ainda assim, se confortavam na companhia um do outro. Naquele momento que se desenrolava diante de seus olhos, se indagou se ela buscava somente sua presença ou se possuía uma intenção muito mais além do que sua mente pudesse evocar.

Oh, está apaixonadinho, é?” Griffon provocou.

A besta alada gargalhava ao assisti-la engatinhar amedrontada, tecendo comentários sobre o quão hilário ficava a situação. O esforço dela para romper a distância que ele imponha o intrigava. Seu impulso primordial com o ato de bravura, enfrentar seu medo de altura, fora lhe estender a mão.

"Ajude ela, V", debochou o demônio. "Seja o príncipe que ela precisa."

— Eu não sou uma princesa que precisa ser resgatada. — Diva grunhiu, franzindo a testa. — Só foi um erro de cálculo.

Sem contestar, V agarrou o pulso da jovem no instante em que o corpo dela se resvalou para uma queda que prometia ser dolorosa e agonizante após um passo em falso. Com cuidado e munido de uma parcela da sua humilde aptidão física, a içou para perto de uma área segura da construção ouvindo o familiar cuspindo sua opinião quanto a deixá-los a sós para curtirem o clima.

Diva respirou fundo, tanto de alívio quanto de serenidade, se deleitando com o frescor suave e sutilmente frio sussurrando entorno a eles.

— Que escolha interessante. — cantarolou, se acomodando do seu lado, próxima o bastante para ser capaz de sentir o calor irradiando dela feito um pequeno sol. — Você costuma passar o tempo por aqui? Para ser honesta, foi um verdadeiro desafio o caminho pra cá.

— Você tem poderes que lhe proporcionariam maior mobilidade até chegar aqui. — proferiu calmamente ganhando um olhar enigmático da garota. As orbes castanhas o estudaram por um instante e sorriu timidamente.

— Talvez. Quem sabe? — contemplou o arco de estrelas de uma constelação, dispersa. — Não quero te gerar incômodos ou atrapalhar seu momento de reflexão, mas queria saber se estava tudo bem e se tinha algo te incomodando.

V não respondeu a princípio. Viveu anos recluso, sobrevivendo à solidão e enxergando nela um refúgio seguro para seus pensamentos e, diante de uma dinâmica totalmente incompatível com sua natureza reservada, viu uma necessidade de ponderar mais que o habitual. A paciência dela em esperar uma palavra o instigou, por mero instinto, a procurar o melhor modo de verbalizar suas apreensões.

Era muito estranho perceber que, em uma circunstância assim, sua eloquência desaparecera e não tinha absolutamente nada para falar.

"Oh, o gato comeu sua língua, V?", o sarcasmo escorria da voz de Griffon como um lembrete de sua constante presença.

Como colocaria em palavras algo que, até para ele, se tratava de um assunto deveras complexo?

— Entendo se não quiser contar. — deu uma risada suave. — Confesso que esperava que pudesse repartir um pouco do seu lugar seguro. Tudo parece estranho ultimamente... Ou talvez eu mudei muito.

V a escutou enquanto processava seus próprios pensamentos, aos poucos, compreendendo que ele não era o único cheio de dúvidas e inseguranças.

— Quanto mais pessoas conheço, mais quero proteger o que construí com elas. — segredou, a luz que expulsava qualquer Escuridão ainda estava ali, no mais profundo de seu olhar, uma fagulha que se recusava a desistir. — Você é uma delas, V.

Humanos são tão sentimentais, quase sinto que posso chorar... Se eu tivesse essa capacidade.” Griffon se intrometeu, entretanto, não havia mais sarcasmos encobertos.

— Se não quiser contar, entendo perfeitamente. Mas saiba que estarei aqui pra te ouvir quando estiver pronto.

Ignorante ante tamanha resolução, o poeta se relegou a quietude e se deu conta... Existe algo mais humano que admitir suas fragilidades?

Em seu interior, havia uma verdadeira comoção, sua alma gritava por algo que não tinha forma, imagem e não conseguia se expressar com perspicácia.

— Sou humano. — ele iniciou o discurso mais complexo de sua existência, com o coração em frenesi contra seu peito. — Mesmo que esteja superando certos aspectos das minhas debilidades, não posso ir muito além do que meu corpo pode suportar... A verdade é que sou fraco, não posso mudar minha natureza, mas... De alguma forma... Essa fragilidade me fez enxergar melhor o mundo. — encarou as mãos como se estivesse acordado de um longo sonho. — E que agora, com o despontar de uma guerra, a vida parece mais preciosa. Nunca tive ninguém e sempre estava sozinho. Isso representava tudo o que conhecia. — seus olhos verdes vagaram até cruzar com os da jovem. — Ter medo e sofrer fazem parte do que significa ser humano, no entanto, não é somente isso... É meu coração que me torna humano.

V admirou o céu noturno com uma visão mais agridoce.

— Estive todo esse tempo tentando entender. — fixou sua atenção nas estrelas que cintilavam. — Estou aprendendo aos poucos, sei que levará ainda mais para acertar com precisão.

— Não se preocupe, V. Você está no caminho certo. — sorriu.

Coletâneas do Cotidiano em Devil May CryOnde histórias criam vida. Descubra agora