Capítulo 37: O julgamento

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Quando a comitiva chegou em Dalibor, Beatrice estava tão cansada que não percebeu que algo não estava bem. Estava passando por uma madorna, quase pegando no sono profundo quando a carruagem de repente parou.
O cavaleiro chefe de Hawuise que comandava a comitiva apurou os olhos e viu arqueiros nas torres, com flechas e lanças apontadas para a comitiva da rainha. Quando saíram de Craig, ele havia sido avisado que a rainha tinha mandado uma mensagem para Dragomir, avisando de sua chegada.
E agora aquilo? O que significava aquele afronte?
Beatrice notou o silêncio sepulcral. Onde estava as saudações do povo de Dalibor? As pessoas adoravam receber seus soberanos, e nas chegadas e partidas, a estrada transbordava alegria. Mas hoje, o corredor festivo  que os vassalos do rei faziam, não havia sido formado e tampouco  os camponeses estavam ali à espreita para a passagem dos cavaleiros e arqueiros que faziam a felicidade das crianças e de todos os moradores da vila ao redor do castelo.
Algo estava errado. Muito errado.
Foi então que Beatrice ouviu gritos de comando de ataque  e o barulho inconfundível de flechas tocando as cotas de malhas dos cavaleiros.
Num átimo Beatrice ia colocar a cabeça para fora,  quando Agnes a impediu.
-Não Milady! Não faça isso.
E Beatrice então mergulhou num misto de medo e raiva. Ao que tudo parecia, o castelo de Dalibor havia sido invadido! Como ousaram uma artimanha dessa? Onde estava a cavalaria!? Onde estava Sir Robbyn? Os gritos continuavam cada vez mais altos e cada vez mais aflitos.
Beatrice pegou as mãos de Agnes. Estavam apavoradas. Beatrice não somente se ressentia da sua decisão de sair de Craig, como por não ter levado  seu arco e flecha  junto a ela, na carruagem.
Quando pensava o que poderia fazer, a porta abriu  e elas viram um homem que parecia um gigante com uma espada em punho e um arco e flecha nas costas, olhando fixamente para elas.
No peito o brasão inconfundível do Arcerbispo Gregor.
...
Beatrice foi retirada da carruagem pelo braço.
-Tire suas mãos de mim...
O homem parecia não se importar com os pedidos de Beatrice. O homem a arrastava pelo braço, fazendo com que ela tropeçasse no caminho de pedras que levava ao castelo.
Quando eles passaram pelo pátio externo, foi então que Beatrice entendeu  todo o horror da situação. O contigente de cavaleiros e lanceiros presentes ali era a maior que já havia visto em toda sua vida. Nas armaduras,  diversos brasões  de  reinos menores e dos monges guerreiros, evidenciando que havia sido planejada  uma conspiração para o ataque ao castelo de Dalibor.
-Mas porque?Qyal o motivo de tamanha insanidade?
Ao largo, no chão, Beatrice viu a intensidade do combate. O exército de Dalibor tinha sido praticamente exterminado e alguns nobres cavaleiros que serviam a Cornell com lealdade, jaziam no solo inertes.
Havia  outras vítimas também. Homens, mulheres e crianças que ainda a poucos dias a tratavam com gentileza e respeito: Angus, Etien, Grannus,Hakon... Oh meu deus! Eram tantos!
Ao olhar para trás, ela  viu seus  próprios cavaleiros mortos  ou sendo aprisionados em fila caminhando para a masmorra. Em seus semblantes o descrédito, a supresa e a raiva.
Entrando pelo portão, ela viu Agnes, que lutava ferozmente para se desvencilhar de dois brutamontes que a carregavam tirando seus pés do chão.
-Solte-me agora! Solte-me! Preciso cuidar da minha rainha! Seus cafajestes! Me soltem agora mesmo!
Agnes tinha os cabelos desgrenhados e parte de seu lindo vestido estava rasgado. Beatrice respirou fundo e mexeu os lábios falando.
-Não lute! Vai dar tudo certo.
O olhar da sua de companhia, lhe dizia tudo. O horror, o espanto, a raiva e o medo..
Agnes estava com medo, e ela também.
...
Beatrice tinha que pensar rápido. Onde estava o exército de Cornell? Ela sabia que a grande parte dos homens, havia viajado para o casamento de Derek. Em Dalibor, havia ficado um pequeno contigente de aproximadamente cinquenta homens sob o comando de Robbyn. Então, eram bem poucos cavaleiros diante da quantidade de homens que estavam ali.
Beatrice suspirou.
-Leve-me imediatamente a quem planejou isso tudo.
O gigante armado a olhou com desdém, e continuou a arrastando pelo braço, passando no meio das pessoas sem vida, ou mortalmente feridas.
Ao chegar dentro do castelo, Beatrice viu alguns nobres que viviam sob a proteção de Cornell num canto do salão principal. Em seus rostos havia surpresa e horror. Eles estavam assustados e submissos a um grupo de cavaleiros armados.
Quando ela passou por eles, um marquês que era muito gentil com ela, Lord Gentz, fez uma reverência. Imediatamente, um cavaleiro de Gregor decepou a cabeça do homem, que rolou no chão, deixando todos presentes estarrecidos, enquanto os demais cavaleiros, riam.
Beatrice achou que fosse desmaiar diante daquela cena.
Não! Aquilo era um pesadelo! Em breve ela acordaria ao lado de Cornell em Craig, e ele a abraçaria e todo esse medo que sentia se dissiparia como fumaça no céu...
...
Gregor estava sentado na grande mesa da sala do tribunal , onde Cornell se reunia com seus conselheiros e nobres diplomatas para decidir sobre questões de seus vassalos.
O arcebispo estava vestido com sua roupa de cerimônia na cor roxa e ocupava a cadeira de Cornell! Beatrice sentia-se enjoada, seu estômago estava se revirando depois do que ela vira acontece com o marquês.
-Pobre coitado do homem! Teve a cabeça decepada após fazer uma reverência a ela.
Beatrice fechou os olhos e respirou fundo.
-Preciso de forças! Preciso ser forte!
Então, ela começou a olhar a sua volta, e viu Dragomir, sentado à direita de Gregor e Ursulla a sua esquerda.
-Lá estavam os orquestadores de todo aquele mal que se abatia sobre Dalibor!
Também notou que alguns conselheiros estavam sentados na mesa, ocupando seus lugares e tinham no rosto um ar de escárnio e desdém para com ela. Havia outras cadeiras vazias.
O que havia acontecido com os conselheiros ausentes? Estariam mortos? Presos? Onde estaria  o nobre e gentil Sir Lutor?
Beatrice sentiu suas pernas tremerem. Suas forças estavam no final.
Ela não sabia se poderia se manter em pé por mais tempo.
-Eis que chega a rainha de Dalibor. Ou melhor a mulher diabólica que assumiu um trono que ela não merece.
Beatrice olhou para Gregor profundamente abatida e abalada.
Não poderia suportar aquilo.
-Do que ele estava falando?
Em silêncio, Beatrice ergueu o rosto. Decidiu optar pelo silêncio. Havia aprendido a não falar em horas impróprias e aquele era um momento certo para colocar esse aprendizado em prática.
-Lady Beatrice de Hawuise, este é o seu julgamento.
Beatrice olhou em volta e viu uma centena de cavaleiros fortemente armados com lanças e espadas em punho. Outras dezenas de pessoas que estavam na sala, eram os nobres sustentados por Dalibor, os mesmos que falavam pelas suas costas e desacreditavam a sua soberania.
-Traidores!
Ela então decidiu que precisava se salvar daquela corja inimiga.
-Serei julgada pelo quê milorde?
Gregor a olhou com interesse.
Sua beleza era realmente assustadora. Sua gravidez fez com que sua face ficasse mais rosada, seus seios estavam mais cheios e seus cabelos antes presos, caiam sedosos e macios sobre eles!
Poderia ser uma filha da santíssima Virgem, mas não! Ela era uma criatura abominável e pecadora! Ela havia levado Cornell a fazer coisas que eram consideradas pecaminosas pela igreja. Mas não foi por falta de aviso. Ele havia avisado ao rei, mas ele não o ouviu! Restava a ele agora, resolver aquela situação, antes que os modos indecentes, indecorosos, imorais dessa mulher, se tornassem uma atitude comum nesse reino.
-Como Arcepisbo desse reino, e representante de nossa Mater Igreja, o Senhor me revelou que milady não cumpriria com a doutrina da igreja. O primeiro sinal veio no dia do casamento, quando essa mulher cuspiu no prato do rei. Em seguida, fui informado que milady apontou um punhal para o rei, no estábulo. Um punhal meus lordes!!!
Beatrice sentia-se petrificada.
Então, aquilo tudo era devido a ela! A morte de todas aquelas pessoas era devido ao seu comportamento!
-Mas milorde precisa entender que essas atitudes não foram propositais.. eu... eu...
-Não estou perguntando nada a milady. Estou afirmando o que todos viram. Sem contar, a desobediência dos seus comportamentos como esposa e rainha desse reino!
Soube que milady dormiu no quarto do rei durante as noites, sobretudo aos domingos, dia proibido pela igreja para... fornicação..
Beatrice sentiu sua face arder. Estava horrorizada com o que estava acontecendo! Simplesmente horrorizada!
-Eu fui claro o bastante no dia do casamento para dizer sobre os dias que sua majestade poderia tê-la por algumas horas em seu quarto privativo! Mas milady, demonstrou ser uma legítima filha de Eva. Pecadora. E se tornou a principal agente do mal que se abateu sobre Dalibor.
Beatrice sentiu as pernas arquearem e ela simplesmente caiu no chão, sentindo o frio entrar por suas pernas e tomando seu corpo inteiro.
Aquele julgamento era uma armadilha. E ela soube que diante do que o Arcebispo dizia, ela teria pouca ou nenhuma chance de se defender.
O arcebispo levantou -se e caminhou até a figura feminina caída no chão.
-Eva induziu Adão a pecar, assim como você fez com sua majestade. Seu corpo feminino, levou o rei à concupiscência e à luxúria.
Beatrice olhou para cima e deu de cara com olhos frios e vingativos. Mas precisava tentar.
-Eu vos peço que me deixe argumentar milorde... eu...
Gregor riu. Um riso perverso.
-Esteja calada, mulher! Pois deveria se lembrar que Adão foi criado primeiro e Eva foi criada depois. Está nas escrituras: Adão m foi seduzido, mas foi Eva que o seduziu. É a mulher que induz o homem ao erro, a transgressão. E foi o que fez a sua majestade. Isso é uma heresia! Um pecado mortal!
Sentindo que não podia mais se controlar, Beatrice deixou que as lágrimas descessem de seu rosto. Ela sabia que seu fim estava próximo. Não havia mais nada a ser feito.
A igreja detinha um grande poder político, social e filosófico. Os religiosos eram ferozes defensores dos comportamentos designados pela igreja.
E havia um outro fator e talvez o mais importante: A igreja tina tanto poder econômico quanto militar. Nem mesmos os reis ousavam entrar em conflito com a igreja.
Ela se entristeceu com esse pensamento.
Não sabia o quanto Cornell estaria disposto a concordar com tudo aquilo. No fundo, o arcebispo tinha razão. Ela sabia que havia rompido com as tradições eclesiásticas. Mas nunca iria admitir que errou diante daquele homem e daqueles porcos traidores. Ela apenas viveu a sua vida e fez o que seu coração ordenou. O arcebispo poderia até matá-la, mas ela nunca diria que era culpada por amar seu marido e por ter feito coisas que não tiveram a intenção de machucá-lo ou humilhá-lo.
O arcebispo continuou.
-O rei fez de tudo. Até mandá-la para a torre vermelha ele mandou! Mas milady persistiu. Portanto, meu veredicto é que milady é culpada de heresia!
Beatrice levantou lentamente do chão e olhou fixamente para Gregor.
-Pois pode me condenar do que quiser! Mas nunca vou me declarar culpada de tentar matar meu marido ou de satisfazê-lo como mulher!
Podem me chamar do que quiserem, não me importo! Eu vivi o que vivi. E o tempo não volta atrás.
Gregor estava irado! Como aquela mulherzinha ousava desafia-lo publicamente?
-Se não se arrepender eu a excomungarei e a levarei para a masmorra para que seja torturada até admitir que é uma pecadora, que cometeu heresia contra a igreja e contra a vida do rei.
Com a cabeça erguida, Beatrice andou até o gigante de armadura estava e falou:
- Estou pronta. Sele o meu destino.
Gregor a olhou com ódio.
Queria poder lhe ferir, lhe humilhar! Quem aquela mulher achava que ela era? Sua decisão foi acertada! Ele estava certo! Ela era diabólica!
Ele então, se aproximou de Beatrice ele lhe um tapa no rosto que tirou sangue de sua boca.
-Como dizia o venerável benfeitor Santo Agostinho: "A mulher é uma besta insegura e instável." Está excomungada pelo poder da santa igreja! Leve-a para a masmorra.
Quando Beatrice saiu, Gregor estava agitado e pediu que todos se retirassem do recinto, ficando apenas na companhia de Dragomir e Ursulla.
-Bravo Dom Gregor! Milorde foi simplesmente fantástico. -Disse Dragomir com alegria,
Gregor porém, o olhou com desdém.
-Vocês fizeram bem o seu trabalho, serão recompensados, mas...ainda não acabou.
Ursulla ouviu tudo calada, mas desfez seu ar de imensa satisfação após presenciar a humilhação e condenação pública de Beatrice.
-Velhote caviloso! Ele havia prometido terras e um castelo para ambos se trouxessem Beatrice até o tribunal para que fosse julgada e banida da face da terra, e agora o desleal vinha com aquela história de que ainda não acabou?
-Ainda não acabou vossa reverendíssima?- Disse Ursulla com ironia.
Gregor a olhou com desprezo e se dirigiu diretamente a Dragomir:
-Falta a execução.
Dragomir estava irritado e profundamente nervoso. Precisava deixar Dalibor o mais rápido possível. Receava que alguma coisa de muito ruim poderia acontecer desconto ele se permanecesse mais tempo por ali.
-Mas... milorde nos assegurou que teríamos nossa recompensa, tão logo houvesse o julgamento.
O Velho homem olhou para suas mãos magras onde pendia seu anel de arcebispado.
-Sim. Mas mudei de ideia. A missão ainda não acabou. Não até o rei chegar. E será preciso que tudo termine bem. Para todos nós.

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