Lena
Ter sido chamada por Kara para ir almoçar foi um pouco surpreendente. Assim como foi surpreendente lembrar que ela não a deixou chorando sozinha, que deixou um bilhete antes de sair e que seu número agora era seu contato de emergência naquela pousada.
Mesmo tendo agradecido Kara por tê-la a ajudado, não queria que ela tivesse continuado a abraçando por ter ficado com dó de seu estado. Gostaria de saber que ela fez aquilo porque quis, porque sentiu vontade e queria de verdade estar ali. Até pensou em questionar os seus motivos enquanto conversavam naquele pequeno almoxarifado, mas não teve coragem. Finalmente estavam tendo uma conversa civilizada, então achou melhor só agradecer. Mas, se se conhecia bem, quando menos esperasse, a pergunta escaparia de boca. Assim como em todas conversas que teve com Kara, falava coisas sem nem pensar, não demoraria muito para fazer novamente a qualquer momento.
Pensando em todas essas coisas, segurava o bilhete que Kara a havia deixado. O releu várias e várias vezes desde quinta e nem mesmo entendia o porque. Pode ser porque fosse um pouco chocante saber que a mulher irritada e grossa que conheceu podia ser gentil.
Relendo pela centésima vez aquelas palavras que já tinha decorado, ouviu seu celular apitar. Assim que o pegou, viu que era uma mensagem de Kara dizendo que a esperava em frente a pousada.
Ao combinarem de almoçar, Kara pediu seu número e disse que a buscaria. Não queria aceitar, disse a ela que não precisava fazer aquilo e que podiam se encontrar no restaurante combinado Então, de jeito um simples e que parecia verdadeiro, Kara respondeu:
— Eu quero te levar. A não ser que não se sinta confortável perto de mim. Se for isso, eu vou entender. Eu também não iria gostar de mim depois das coisas que eu disse.
Não foi o comentário que a fez ceder e aceitar a carona, foi como Kara a olhou com expectativa e como parecia mesmo que ela estava tentando fazer as coisas diferentes dessa vez.
Aceitar a sugestão dela era mais um passo em direção a Lara, pois queria que Kara visse que não era o monstro que achava. Era só uma mãe desesperada para ter filha perto, assim como ela era uma mãe querendo proteger a sua filha. Não dava para chegarem em um consenso se não começassem a ceder. Kara já havia dado um passo, então tinha chegado a sua vez de dar o braço a torcer.
Levantando rapidamente da cama, se olhou no espelho. Não sabia onde ia, muito menos como deveria se vestir, então colocou uma roupa casual e vestiu um blazer leve para ficar um pouco mais elegante.
Pegando seu celular, saiu do quarto.
Passando pela recepção da pousada, cumprimentou uma das funcionárias e seguiu para a saída. Assim colocou seus pés do lado de fora, avistou Kara encostada no carro. Tinha chegado a se iludir que ela levaria Lara para o almoço ao mesmo tempo que sabia o quão era impossível disso acontecer.
Respirando fundo, atravessou a rua indo em direção a ela. Ao se aproximar sorriu quando Kara sorriu e mexeu em seus óculos.
É, ela, incontestavelmente, era bem fofa com aqueles óculos.
— Olá, senhorita Luthor! — a cumprimentou em um tom brincalhão.
— Olá, doutora Danvers!
— Eu esqueci de perguntar. Você come peixe? Porque se não come, eu vou ter que pensar em te levar em outro lugar e vou ter que cancelar a reserva que fiz nesse lugar onde tem peixe.
— Eu como peixe.
— Ai que bom! — suspirou de alivio enquanto abria a porta do passageiro. — Vamos?
— Você não vai fazer algo ruim comigo, não né? — a questionou antes de entrar no carro.
— Sua pergunta é justa. Mas a resposta dela é: não. Só pretendo almoçar com você e conversar. Prometo — levantou a palma da mão direita no ar. — Promessa de escoteiro.
— Você já pertenceu aos escoteiros?
— Não, mas se eles prometem assim, deve valer de algo, não?
Foi inevitável não rir, pois Kara parecia estar falando muito sério. — Promessa de escoteiro só vale se você é escoteiro. Se você não é um, sinto em te informar que suas palavras não valeram de nada.
— Ok! — pensou um pouco. — Promessa de mindinho?
— Por acaso você tem cinco anos? — arqueou a sobrancelha.
— Trinta a mais, na verdade — esticou o mindinho esperando Lena fazer a parte dela. — A promessa de mindinho não pode ser quebrada. É pra você ver que estou falando sério e que, por mais que meu passado me condene, eu não vou te fazer nenhum mal. Não quero brigar, quero te conhecer e que você me conheça. Sei que em apenas um almoço não dá pra saber muita coisa, mas temos que começar de algum jeito.
Enlaçou seu dedo ao de Kara. — Eu quero a mesma coisa.
— Ótimo! — sorriu abertamente. — Agora, por favor, entre no carro, coloque o cinto e aproveite a viagem.
Fazendo o que Kara pediu, entrou no veículo e enquanto colocava o cinto, observou a loira dar uma corridinha para chegar ao outro lado do motorista.
— Se importa se eu ligar o rádio? Gosto de dirigir escutando música.
— Não me importo.
— Está com fome? — ligou o rádio o deixando baixinho. — Chegaremos no restaurante em uns vinte minutos e, assim, não quero que você desmaie de fome nesse meio tempo.
— Eu aguento vinte minutos.
A olhando, Kara assentiu levemente com a cabeça.
O caminho para o restaurante foi feito em silêncio, Lena não sabia dizer se aquilo significava uma coisa boa ou ruim. Pelo menos quando Kara a falava horríveis, tinha noção que aquilo era o que se passava em sua mente. Com ela calada, ficava difícil de certeza de alguma coisa.
Olhando pela janela do carro, ficou admirando a paisagem.
Por ser sábado, a cidade estava cheia e as praias estavam lotadas por causa do tempo quente que não dava trégua. National City não era tão quente daquele jeito.
Exatamente vinte minutos depois, Kara estacionou o carro numa rua bastante movimentada.
— Eu espero que não se importe em andar um pouquinho — desligou o carro encarando Lena. — Só vamos descer a rua.
— Não me importo com isso.
Recebendo um sorriso de Kara, tirou o cinto e desceu do carro se aproximando da loira que já a aguardava na calçada.
— Já esteve na Carolina do Norte antes? — perguntou quando começaram a andar.
— Não. Nunca.
— O que está achando?
— Ainda não tenho uma opinião formada. E, por causa do hospital e tudo o que eu quero fazer lá, não tenho tido muito tempo para aproveitar.
— Isso é uma pena — colocou as mãos no bolso da calça. — Aposto que vai gostar de tudo quando puder aproveitar.
— A sua amiga me disse que eu podia sair com ela e a assistente da Cat.
— A Gayle?
— Ela mesma.
— Ela tem essa coisa que querer acolher as pessoas. Foi mais ou menos assim que viramos amigas.
— Se conhecem há muito tempo? — a olhou.
— Um bom tempo. Desde a faculdade — virou a cabeça para fitá-la. — Ela é uma boa pessoa, só é meio doidinha. Mas se você sair com ela, vai ser divertir muito. Isso eu te garanto.
— A assistente da Cat me disse que ela é ‘doidinha’.
Pensou em falar o que Gayle a disse sobre a loira estar com medo de perder Lara, mas acabou desistindo. Estavam tendo uma conversa amena e, por mais que quisesse ir direto ao ponto, estava gostando de conseguirem trocar algumas palavras sem ter que ouvir coisas que a doíam.
— Ela é mesmo. Eu a amo na mesma intensidade que quero a estrangular.
Riu um pouco alto pela revolta de Kara. — Vocês devem ter uma linda amizade então.
— Quando ela não está me irritando, temos, sim.
Olhando para frente, finalmente notou que a rua pela qual desciam leva a praia. — O restaurante é na beira da praia?
— É, sim. É aquele do outro lado da rua — apontou.
— Tem um clima bem praiano.
— Têm mesmo. E a comida é excelente.
Poucos passos depois, as duas estavam atravessando a rua.
Entre o calçadão da praia e a areia que dividia espaço com coqueiros, estava o restaurante de dois andares com grandes janelas de vidros presas a estruturas de bambu envernizado. Da calçada até a entrada, tinha um caminho de chão de taco simulando uma ponte que levava a um deque. Do lado direito da porta principal, grandes guarda sóis cobriam cadeiras e mesas espalhadas pelo deque.
Do lado de dentro, o restaurante era complemente iluminado pela luz do sol. Perto de algumas pilastras, coqueiros de tamanho médio estavam espalhados.
O local não estava lotado, mas não parecia tão tranquilo quanto Kara tinha dado a entender no dia anterior.
Logo que passaram pela porta dupla da entrada, foram recepcionadas por uma morena que sorriu alegremente ao ver Kara.
— Kara! — se aproximou a abraçando. — Faz um tempinho que você não aparece aqui.
— Faz um tempinho mesmo — se soltou do abraço. — Reservou a mesa que eu pedi?
— Claro! A mesma mesa para dois de sempre. Me acompanhem, por favor.
Como Kara havia tido a ideia de ir naquele lugar, já prévia que ela o conhecia. A única coisa que não imaginou é que ela a levaria num lugar onde era acostumada ir como uma outra única pessoa.
Será que era costume dela ter encontros naquele restaurante? Se questionou.
Ficando alguns passos para trás, observava Kara conversar animadamente com a morena desconhecida. Elas pareciam ter uma certa intimidade, pois a conversa fluía naturalmente.
Nos fundos do restaurante, elas subiram uma escada que levava ao piso superior. Assim como andar de baixo, havia o salão principal com as mesas e as mesas em volta do lado de fora. A diferença é que esse andar estava com pouca gente.
Mais uma vez passando por outra porta dupla, saíram para o lado fora em que a vista dava para o mar. Indo para o lado esquerdo, chegaram na mesa no fim do corredor.
— Aqui está a mesa. Logo o garçom já vem atendê-las. Fiquem à vontade.
Estava para puxar a cadeira para se sentar, mas Kara acabou fazendo isso primeiro. Ela parecia ter costume de fazer aquilo.
— Obrigada.
— De nada — falou se sentando a sua frente.
— Aqui é bonito — comentou olhando em volta.
— Sempre que venho aqui, eu me sento nessa mesma mesa porque aqui podemos ver bem a extensão do mar, as montanhas ao longe, a imensidão do céu. Mas aqui só é bom entre a primavera e o verão. No outono e no inverno não tem o mesmo encanto.
— Vem sempre aqui?
— Venho. Eu te trouxe em um dos restaurantes favoritos da Lara. Você é a primeira pessoa que trago aqui além dela. Isso é pra você saber que quando eu fui te procurar, eu fui com sinceridade.
Desviando o olhar do mar, encarou a loira que já a olhava.
— Kara, se está fazendo isso por pena de mim por causa do que eu falei no elevador e pelo estado que você me viu, não precisa...
— Não é pena — se ajeitou na cadeira. — O que você disse mexeu comigo, não vou mentir. Me senti uma idiota e estúpida por ter falado tanta merda. Quando eu fui na pousada, eu fui pra dizer que queria te ouvir. Já tinha em mente te chamar para algo assim, mas quando vi seu estado, eu soube que o melhor a fazer era tentar te ajudar.
— Então não é pena?
— Não. Você não me parece ser uma mulher que gosta que as pessoas tenham pena de você.
— Não gosto.
— Com licença — o garçom interrompeu as duas. — Prontas para pedir?
— Nem olhamos o cardápio ainda. Quer mais alguns minutos para decidir com calma o que você quer comer? — perguntou à Lena.
— Me mostra o que a Lara gosta de comer aqui. Quero experimentar as comidas favoritas dela.
— Gostei da ideia.
Além de peixe assado e recheado — que era a especialidade da casa — Kara pediu uma porção pequena de camarão com molho branco e outra porção pequena de peixe fritos.
— O que vão querer beber?
— Pra mim uma soda. O que você quer, Lena?
— Pode ser uma soda também.
— Daqui a pouco estará tudo pronto. Com licença — pediu o garçom se retirando.
— Você pediu bastante coisa.
— Eu estou com tanta fome que comeria tudo sozinha, mas vou ser boazinha e deixar um pouquinho com você.
Estava ficando claro que Kara era uma pessoa engraçada, isso fez Lena se perguntar se Lara também era assim. Queria muito saber se ela era uma versão miniatura de Kara ou se tinha qualquer pequeno traço seu.
— Acho que é mais fácil eu deixar um pouquinho pra você. Esse cheiro de comida já está fazendo meu estômago roncar.
Jogando um pouco a cabeça para trás, Kara riu. Era a primeira vez que a via rindo com vontade.
— Posso fazer uma pergunta? — colocou o cotovelo direito na mesa e apoiou o queixo na mão quando parou de rir.
— Pode.
— Você me acha fofa de óculos?
— O que?! — sua expressão mostrava sua confusão com a pergunta.
— Você disse isso quando me viu na quinta, queria saber se é verdade.
— Eu não lembro de ter dito isso.
— Mas você disse. Você falou: ‘ Já te disseram que você fica fofa de óculos?’.
— Eu não disse isso.
— Você disse, sim — insistiu.
— Se eu não lembro, eu não fiz.
Realmente não lembrava de ter dito, mas não tinha como Kara ter lido a sua mente.
— Você disse. Mas não é essa pergunta que eu queria fazer. É que não sei como te perguntar isso, então só quis quebrar qualquer tensão entre nós.
— Pode me perguntar o que quiser.
— Eu fiquei preocupada pela maneira que te encontrei na quinta a noite. Você faz aquilo com frequência?
Encarou a mesa negando com a cabeça. — Eu fiz uma vez. Eu... Eu achava que minha filha não estava viva e acabei exagerando no álcool. Eu queria anestesiar a dor que eu sentia, mas quando eu acordei no dia seguinte, doía muito mais.
— Fez isso dessa vez por minha culpa? As minhas palavras te levaram aquilo?
— Em parte — respondeu com sinceridade. — Mas o primeiro gatilho veio com aquela mãe assustada achando perderia a filha. Eu me vi nela. O que você me disse foi a gota d’água.
— Você pode me perdoar por isso? — colocou sua mão sobre a de Lena que estava apoiada na mesa. — Eu estava com medo. Sendo sincera, estou ainda. Sempre fomos Lara e eu. Você chegar e dizer do nada que é a mãe biológica dela, me fez perder a cabeça. Pensei que fazendo o que eu estava fazendo, você desistiria, pois já a tinha deixado uma vez, então faria de novo no primeiro empecilho. Sinto muito por ter te julgado mal.
Gayle não estava errada quando disse sobre o medo de Kara, e compreendia seu temor. Não a julgava por querer defender Lara por se sentir ameaçada, no lugar dela, faria o mesmo ou pior.
— Eu não faria com você o que fizeram comigo, Kara — sua voz embargou. — Lara é sua filha, isso ninguém vai mudar, nem mesmo eu. Eu só quero ser a mãe que não pude ser. Que não me deixaram ser.
— Como puderam fazer isso com você? — apertou de leve a sua mão.
Deu ombros. Não queria chorar, mas se Kara quisesse continuar naquele assunto, iria acontecer.
— Eu... — engoliu seco. Vendo mais uma vez Lena tristonha a fez se sentir mal. — Eu preciso de um tempo para poder conversar com Lara. Ela sabe que é adota. Ela é esperta e a criança mais compreensível que conheço, mas antes de deixar você entrar na vida dela, eu preciso de um tempo pra explicar a situação de um jeito que uma menininha de cinco anos entenda.
— Eu espero por isso há três anos, o que é mais um tempo?
— Eu quero muito saber de tudo que te separou dela, mas vou esperar o seu tempo. Por enquanto, vamos focar na Lara e quando você se sentir confortável, você me fala o que acha deve ser falado.
Queria muito naquele mesmo momento falar tudo o que a aconteceu, porém a dor que a consumia fazia tudo ficar complicado. Pelo menos, Kara estava sendo sensível ao ponto de perceber o quanto isso a deixava mal. Esperava que a Kara que a consolou quando precisou e essa que estava a sua frente fosse a Kara verdadeira com iria lidar dali para frente.
— Obrigada por compreender que falar disso não é fácil pra mim. Todos os dias eu tento juntar os pedaços que quebraram em mim.
— Esperarei o quanto for preciso.
— Pode me falar um pouco sobre a Lara? Adoraria saber algumas coisas sobre ela.
O sorriso que apareceu nos lábios de Kara ao ouvir o nome da filha fez Lena sentir que depois de três tentativas de diálogo frustradas, elas finalmente estavam indo a algum lugar.
— Ela tem o mesmo olhar que você — começou dizendo. — E o mesmo sorriso.
Mesmo quando a comida chegou, elas manteram o assunto focado em Lara. Pela primeira vez estava descobrindo coisas relacionada à sua filha e isso fez seu coração se alegrar de um jeito incomum e muito bom.
O almoço com Kara durou quase duas horas. A todo o tempo falaram da pessoa em comum que amavam e se tivessem ficado mais tempo por lá, teriam falado muito mais.
Vinte minutos depois do fim do almoço, estavam paradas na porta da pousada novamente.
— Gostei das coisas que me contou sobre a Lara. Você nem faz ideia de como isso animou meu dia — fitou Kara.
— Que bom que consegui me redimir um pouquinho.
Se encararam em silêncio por alguns instantes. Faziam isso desde que se viram a primeira vez e nem notaram.
— Espero poder ouvir mais histórias assim.
— Pode me perguntar tudo sobre ela sempre que quiser. Pode me ligar, mandar mensagens, me parar no corredor do hospital. Se isso for te trazer algum alivio enquanto eu penso em como conversar com ela sobre você, ficarei feliz em te falar tudo.
— Nos vemos segunda no hospital?
— Claro! Com certeza. Não vou te arrastar pra nenhum lugar com pouca luz.
Riu pela brincadeira. — Até mais ver, Kara!
— Se cuida.
— Você também.
O tempo juntas se encerrou com um sorriso sincero de ambas as partes.
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Continuam gostando da história?
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Come A Little Closer
Fanfiction[Concluída] Kara Danvers é uma médica que leva uma vida bastante sossegada numa cidade litorânea na Carolina do Norte. Sua vida começa a mudar quando ela encontra um bebê abandonado na sua porta. Um tempo depois, uma nova reviravolta acontece quando...