12 - Queimar

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se não queimar um pouco, então 
qual o sentido de brincar com fogo? 
— Bridgett Devoue

Esperei por Carlisle na recepção. Fiquei sentada nas cadeiras reservadas aos pacientes esperando suas senhas serem chamadas e ignorei firmemente cada olhar dirigido à mim. Era meio difícil, na verdade, então me enfiei de volta em minha leitura.

Utterson continuava a ter a ideia errada sobre a ligação entre Jekyll e Hyde e buscando formas de eximir o médico da suposta pressão feita pelo outro.

Na primeira vez em que eu lera o livro, houve a preocupação genuína sobre o que Hyde estaria fazendo com Jekyll e que espécie de monstro ele seria. Agora que eu já o havia relido mais vezes do que podia contar, Utterson sempre me parecia intrometido e também um tanto obtuso. Mas talvez fosse só porque eu já sabia o que aconteceria.

Presa em minha leitura, não ouvi Carlisle se aproximar, mas também não me assustei dessa vez. Ele se assomou na minha frente, fazendo sombra sobre meu livro, e ergui o rosto com um sorrisinho involuntário.

— Que livro é esse? — ele tentou espiar a capa.

Fechei o livro e lhe mostrei.

— Já li umas mil vezes — disse. — Você devia tentar também. 

— Ah, eu já li — ele deu um sorrisinho também ao ver o título. — So porque a fantasia e a ficção científica não me apetecem, não quer dizer que não conheça ao menos os clássicos. Falo com propriedade.

Revirei os olhos, colocando-me de pé e enfiando o livro na bolsa.

— Sinceramente, não sei como pode não gostar. Esse aqui, então… Toda a mensagem sobre querer arrancar o mal de dentro de si…

— É justamente um dos fatores que me desagrada — caminhamos para fora do hospital e Carlisle segurou a porta para mim.

O mundo estava caindo. Parecia que estávamos repetindo o dia do acidente na escola, pois eu mal via os carros no estacionamento e o vento que cortava fazia meu nariz doer. Olhei para o chão ainda coberto de gelo… Seria uma travessia e tanto até o carro.

— Como assim? — quis saber, também prolongando um pouco o tempo que tinha antes de me aventurar na armadilha gelada e escorregadia.

Carlisle emitiu um suspiro. Não me pareceu enfadado ou irritado, apenas cansado. Ele me encarou com seriedade, quase me medindo com os olhos.

— Não se pode negar a perversidade em cada ser. Toda a temática de dualidade entre o bem e o mal, virtude e pecado… — ele balançou a cabeça. — Tudo isso parece presumir que o mundo é todo preto e branco e que os bons se distinguem claramente dos ruins. Ninguém é puramente uma coisa só. Gosto de pensar que todos podem ser salvos.

— Bom, é claro que eu concordo, mas não acha que se o experimento de Jekyll tivesse dado certo e fosse aplicado… Não acha que teríamos um mundo muito melhor? Não gostaria de se livrar da sua pior parte?

Isso pareceu tocá-lo. Seu olhar mudou. Carlisle continou imóvel, exatamente como estava antes, mas algo em seus olhos simplesmente mudou. Como se eu tivesse cutucado uma ferida aberta.

Tive a sensação de tê-lo lembrado de algo doloroso.

Durou apenas um momento, no entanto, porque logo ele redirecionou os olhos para o estacionamento e a chuva que se derramava como uma cachoeira.

— Melhor irmos logo — disse, abrindo o guarda-chuva preto que tinha em mãos e me estendendo um braço.

Hesitei.

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