Capítulo 22

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Duas Vidas

Mr. Moore só mostrara metade da decisão e da atividade de que era capaz na defesa de sua fábrica. A outra metade, a mais terrível, ele mostrou no ardor infatigável que sucedeu à perseguição do líder daquele motim. Ele não queria atacar a massa, talvez um sentimento de justiça lhe dissesse que homens desorientados e mal aconselhados, ainda por cima atiçados pelas privações, não eram dignos da sua vingança.

Contudo, não se sabia quem eram os chefes do bando. Acreditava-se que era gente de fora, vinda das grandes cidades, muitos deles nem eram membros da classe operária. Eram valdevinos, gente falida, homens que nada tinham a perder. Mr. Moore perseguia-os como um cão persegue uma caça. O seu cavalo devia odiar aquela época, pois quase não tinha momentos de descanso. Mr. Moore vivia nas estradas, e os magistrados dos distritos deviam temê-lo, pois eram homens lentos e tímidos. Ele, contudo, forçava-os a vencerem certo medo que os acometia: o medo do assassino. Fora esse medo que manietara os braços de todos os industriais e de quase todos os homens públicos do distrito. O único que não temia nada era Mr. Helstone.

Mr. Moore conhecia o perigo, contudo o desprezava. Os líderes que ele queria pegar eram quatro. No espaço de quinze dias, dois foram apanhados perto de Stilbro; quanto aos outros dois, foi preciso procurar fora das fronteiras de Yorkshire.

Ao mesmo tempo, o comerciante não deixava de lado a sua fábrica danificada. As reparações, contudo, não eram difíceis; o carpinteiro e o vidraceiro davam conta do recado. Os arruaceiros não tinham conseguido entrar na casa das máquinas que, por esse motivo, nada sofreram.

Durante esta vida ocupada, enquanto a severa justiça e os negócios reclamavam toda a sua energia e o absorviam por completo, fazia ele algum esforço para manter aceso um fogo mais doce do que aqueles que arderam no tempo de Nêmesis. Eis o que seria difícil descobrir. Raramente se encaminhava para os lados de Fieldhead. Se aparecia por lá, suas visitas eram breves; se ia ao presbitério, era apenas para se reunir em conferência com o pastor e no gabinete dele.

Durante esse período, a guerra continuava e não apresentava o menor indício de tempo sereno. E a ruína fazia sempre a sua obra sob os passos de Mr. Moore, quer ele andasse a cavalo ou a pé, quer apenas atravessasse o seu escritório ou galopasse ao longo do triste pântano de Rushedge, sentia o chão tremer sob os seus passos.

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Como decorreu o verão para as misses Keeldar e Helstone? Começaremos pela herdeira. Que ar ela tem? O de uma moça pálida que se enfraquecia, abandonada por um infiel apaixonado? De modo algum. Miss Keeldar estava perfeitamente bem. A sua presença alegrava o velho e sombrio solar. A galeria e os quartos ressoavam muitas vezes os ecos alegres da sua voz.

De vez em quando ela tomava o seu trabalho de agulha, mas, por qualquer fatalidade, nunca lhe sucedia trabalhar nele por mais de cinco minutos seguidos. Mal acabava de preparar o dedal e de enfiar a linha na agulha, um pensamento súbito fazia com que corresse ao andar superior, talvez para procurar outro estojo com agulhas de marfim de que acabava de se recordar, ou uma velha caixa de costura de que não precisava mais para nada, mas que nesse momento se lhe afigurava indispensável. Parava em frente ao espelho para arranjar os cabelos, ou colocar em ordem uma gaveta que pensava ter deixado pela manhã numa desordem. Ou, talvez, apenas para contemplar de certa janela o panorama no qual se avistava a igreja e o presbitério de Briarfield, agradavelmente submersos pelo arvoredo.

Mal retornava à sala de visitas, escutava a respiração estrangulada de Tártaro na porta do alpendre e tinha que correr para abri-la. Estava muito calor e ele entrava ofegante. Miss Keeldar tinha de levá-lo à cozinha e ver com seus próprios olhos se a tigela de água estava cheia. Através da porta aberta da cozinha, avistava-se o pátio cheio de galinhas, perus, pombos brancos, de pescoço encarnado, outros azuis ou cor de canela. Espetáculo irresistível para Miss Keeldar! Ela corria para buscar migalhas de pão para jogar a eles nos degraus da escada e em torno dela comprimiam-se seus súditos emplumados.

Shirley (1843)Onde histórias criam vida. Descubra agora