Capítulo 36

18 3 2
                                    

Escrito na Sala de Estudos

As dúvidas de Louis Moore com respeito ao abandono imediato de Fieldhead por Mr. Sympson converteram-se em certeza. Logo no dia seguinte ao desentendimento por causa da recusa de Miss Keeldar ao pedido de casamento feito por Sir Philip Nunnely, houve uma espécie de reconciliação entre tio e sobrinha, portanto, a família ficou inteira.

As coisas correram regularmente durante algum tempo. Miss Keeldar estava bem, pois Louis Moore encontrara meios de lhe tirar as apreensões. Na verdade, a partir do momento em que ela lhe dera a sua confiança, todos os seus terrores pareciam ter-se evaporado. Seu coração se tornara tão alegre, seu caráter tão despreocupado como o de uma criança que deixa aos pais a responsabilidade pela sua existência. Louis e William Farren, que tinham levantado informações sobre o estado de Phoebe, concordaram em afirmar que a cadela não estava doente, mas apenas os maus tratos a tinham feito fugir de casa.

O mês de novembro passou voando e dezembro chegou branco de neve. Desta vez os Sympsons iam embora, pois tinham que estar em casa para o Natal. Numa tarde fria, durante a última semana da sua estada, Louis Moore pegou mais uma vez o seu caderninho e dialogou com ele:

"Ela está mais encantadora do que nunca. Desde que se dissipou aquela pequena nuvem, todo o langor desapareceu. Surpreendo-me ao ver com que rapidez recobrou o vigor, graças à sua exuberante mocidade. Ontem de manhã, quando a vi e a escutei, se assim posso dizer, senti-a em cada fibra de meu ser. Contudo, passei da sua presença deslumbrante à fria sala de estudos. Mas hoje a sala se tornou alegre para mim, pois encontrei por lá o Harry com Miss Keeldar. Estavam um ao lado do outro; ela o fazia repetir uma lição; uma mão segurava o livro e a outra estava apoiada nos braços do primo. Este rapaz tem mais do que a sua parte de privilégios. Vi quando suas pálpebras se agitaram quando eu entrei, porém, ela não ergueu seus olhos. Eu disse a mim mesmo: se eu fosse seu igual, poderia ver reserva nessa frieza, até mesmo amor..., mas, na minha situação, atrever-me-ei a procurar nela esse sentimento? Entretanto, ousei, finalmente, ter uma hora de conversa com ela. Não me contentei com pouco, quis uma entrevista. Com muita decisão, indiquei a porta ao Harry e, sem hesitar, disse-lhe: vá onde quiser, meu rapaz, mas até que o chame de volta, não retorne. O menino, conforme pude notar, ficou contente por ter sido mandado embora; este rapaz é muito novo, mas sabe enxergar e refletir. O seu olhar meditativo tem, às vezes, um brilho estranho. Ao olhar para mim, sente em parte o que me prende a Miss Keeldar. Adivinha que há uma delícia maior na reserva com que sou tratado do que a de todos os carinhos que ela dá a ele. Sentei-me à escrivaninha sem mostrar-me perturbado. Não estava nas minhas intenções pronunciar qualquer palavra de amor ou deixar aparecer o fogo que me devorava. De preferência mostrar-me simplesmente egoísta e interesseiro; havia resolutamente me decidido a me afastar dela; a ir procurar do outro lado do globo uma nova vida, fria e estéril. Nessa manhã, portanto, eu quis observá-la de perto antes de deixá-la para sempre. Estava decidido a conhecer aquela a quem eu deixaria; comecei a aparar algumas penas; minha mão não tremeu; a voz permaneceu firme enquanto se seguia o diálogo abaixo:"

– Dentro de uma semana, a partir de hoje, estará sozinha em Fieldhead, Miss Keeldar.

– Sim, creio que a intenção de meu tio é agora definitiva. E o senhor, deixará de ser preceptor de Harry?

– Sim. Vou me separar dele por algum tempo. Se vivermos, um dia nos reencontraremos, pois somos amigos, mas vou deixar para sempre a família Sympson. Felizmente, esta modificação não me pegou desprevenido, apenas vai apressar projetos que eu já tinha feito há muito tempo.

– Não existem acontecimentos que o apanhem desprevenido. Tenho sempre a impressão de que o senhor está no mundo como um arqueiro vigilante escondido atento atrás de um bosque. Na sua aljava há sempre mais de uma flecha e o seu arco tem uma corda suplementar. O seu irmão é como o senhor. Ambos seriam capazes de se aventurar, como caçadores sem pátria, em meio às vastas solidões do Oeste e nada lhes faltaria. A árvore que cortassem havia de lhes fornecer uma cabana; a floresta desbravada ceder-lhes-ia um campo; o búfalo, sentindo o poder das suas carabinas, viria, de cabeça baixa, prosternar-se aos seus pés.

Shirley (1843)Onde histórias criam vida. Descubra agora