5-SONHE UM PEQUENO SONHO COMIGO

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Estrelas brilham acima de você

Brisas noturnas parecem sussurrar : eu te amo.

Pássaro cantando na árvore de sicômoro

Sonhe um pequeno sonho comigo

Dream a little dream of me — The Mamas & Papas


Acordei sobressaltada, e levei um bom tempo para me situar no tempo e espaço. O teto com manchas amarelas e o cheiro forte do cigarro me lembraram que eu estava no quarto daquele hotel fuleiro. A sensação de corpo moído me lembrou do que aconteceu.

Tentei voltar a dormir e continuar na melhor parte do sonho. Porque era um lugar melhor que a realidade, porque a sensação do beijo, do calor, de ser possuída daquela maneira ainda estavam vívidas, pulsantes. Aquele toque, sabor... desejei experimentá-los. Aquele olhar... ah, o quão doce foi o jeito que aqueles olhos azuis olharam para aquela mulher. Eu, que em toda minha vida, havia recebido tantos olhares de pena, medo, e desprezo, morreria por um olhar daqueles.

Bom, alguém morreu.

E morreu feio.

E eu também quase morri.

Levantei-me da cama ainda vestida com a mesma roupa imunda e sapatos. Fui ao banheiro conferir no espelho de parede o estrago. Para meu assombro, não havia nada de estranho em meu rosto, exceto as sujeiras que ficaram agarradas no sangue seco e nos cabelos. Minhas mãos também não tinham nenhum arranhão aparente. E tão pouco era incômodo ficar nas pontas dos pés, ou andar. Não como havia sido na noite anterior que precisei de ajuda de estranhos para chegar ao hotel.

— Por Deus! O que aconteceu, jovem? — havia questionado o homem com rosto infantil, cabelos castanhos escuros e olhos azuis após dar marcha ré e parar ao meu lado. — Você não tá vindo daquele bar...aquele ...

—Steve...— A loira, branca com pele bronzeada e bem-vestida sentada no banco do carona tocou na mão do homem. — Você está bem? Precisa de ajuda? Médico? Polícia?

—Não! Sim!... Eu to bem... eu só tava passando, fui atacada...

—Ah, pobrezinha... você foi assaltada? Por humanos?

—Sim...e eu só quero ir embora.

A mulher trocou olhares com o homem e mexeu na bolsa cara e chique dela enquanto o homem abria a porta de trás para mim.

— Precisa de uma carona? — ele me perguntou.

— Não tenha medo. — A mulher estendeu para mim um cartão branco com um sol desenhado. — Eu sou Sarah Newlin, e esse aqui é meu marido Steve. Nós somos representantes da Sociedade do Sol. Venha nos visitar um dia... agora, onde podemos deixá-la?

Por sorte, o casal Newlin tinha sido realmente gentil me deixando na porta do hotel. Confesso que demorei a perceber que o homem do volante era o filho do reverendo Newlin, uma figura conhecida por sua política anti vampiros, e minha maior surpresa foi perceber que ele se mostrou mais moderado e sensato que o pai.

Mas agora no banheiro do hotel, com as mãos em forma de concha, recolhia a água da torneira para jogar no rosto, assistindo a sujeira descer pelo ralo e meu rosto refletir intacto.

Nada, nadinha, parecia até que minha pele estava mais macia.

E se eu tivesse ido ao hospital, além do gasto desnecessário, como explicar isso para os médicos? Que havia algo de diferente comigo, era óbvio, mas o que diabos era? Será que eu realmente queria saber? Deveria? O que eram aquelas coisas de ontem? Gnomos? Por que Eric me salvou, duas vezes, da morte? Quem era o homem do olhar que me magoou mais que a surra? Quem era essa tal de Acácia que, noite após noite, eu sonhava com ela morrendo, ardendo em chamas, de dentro para fora e que agora eu a via em sonhos bem safadinhos com um rapaz... que eu entendia o apelo, mas não lembrava da fusa? Talvez eu devesse desistir de tudo. Certamente o que aconteceu na noite anterior não foi a recepção de boas vindas que esperava, mas como lidar com todas essas dúvidas que me deixavam em cólicas?

Das cinzasOnde histórias criam vida. Descubra agora