Ao abrir os olhos, Kali ainda estava com a boca encostada na minha, a empurrei para longe de mim. Com as mãos na cabeça, me sentei encostada na parede. As memórias chegavam amontoadas e desorganizadas em um fluxo contínuo. Mal dava para respirar.
Eu não era só a reencarnação de Acácia, era... outra coisa. O mesmo ser, num eterno ciclo de nascer e morrer até haver apenas o Todo e o Nada. Nunca esquecer. Nunca gerar vida.
Descobrir o que era não me mudou de uma hora para outra, não desenvolvi nenhum tipo de sabedoria ancestral mágica sobre o funcionamento do mundo, só sobre os meus poderes. O que já era muito, mas continuava uma jovem de vinte um anos assustada e traumatizada e o pior... completamente apaixonada por um manipulador desprezível do qual eu nunca tive a chance de escapar porque eu mesma tinha traçado aquele destino.
Kali se ajoelhou na minha frente, aos prantos misturando as línguas; foi difícil, mas entendi; eu precisava ser rápida, a magia que mantinha a essência do irmão no corpo estava enfraquecendo.
Do chão, me levantei e fui até Feyisa. Ao tocar em seu coração, sem batimentos, pude sentir o último fôlego preso. E mesmo com as lembranças de nossa amizade antiga, ainda era difícil não me ressentir por eles tentarem me matar. E ao invés de salvá-lo, caminhei em direção a saída do salão do tempo.
Eu era mesmo muito pequena para ter tanto poder.
Mas antes de alcançar a saída, voltei.
— Kali... eu ainda sou um pouco humana... talvez não funcione. — Ela continuava ajoelhada, enfraquecida por todos os esforços que fez até aquele momento.
Uma lágrima. Apenas uma era tudo o que precisava. Busquei dentro de mim parte da energia do Todo e do Nada, parte do que fui e todas as dores e alegrias e o amor ... o amor que sentia por aqueles dois. Sem amor, nada seria possível, pois a minha sina era amar.
Quando o líquido morno e grosso correu pelo meu rosto, pesquei a gota solitária e depositei entre os lábios do garoto.
Ao passar pelo caminho das pedras, ouvi o grito de felicidade de Kali e a energia de Feiysa preencheu o lugar energizando a irmã. Juntos eles eram inteiros. Para alguns seres, a individualidade não era uma opção.
Quando sai de Galma Yeroo, o sol estava no meio do céu e o ar estava muito abafado, precisei dobrar as mangas da blusa e me abanar ao caminhar pelo bosque que separava minha antiga casa da rodovia interestadual.
Infelizmente, aquele era o caminho mais longo. Voar seria ótimo, mas abri mão desse talento há muito tempo, então o único jeito de voltar para Shreveport era caminhar até a estrada e torcer para uma carona até a cidade ou ir a pé até o centro de Sante Croix des Âmes e lá dar meus pulos.
Da onde estava a minha velha casa seria no máximo uns vinte minutos, mas não tinha nada além de escombro e dor para mim lá. Então continuei em frente tentando não pensar na fome ou na sede, nem no calor e nem nos mosquitos.
— O inverno desse lugar não era tão quente assim — resmunguei enfiando a barra da blusa entre o sutiã.
Após 1h sofrida, consegui chegar na rodovia. O sol fazia subir vapor do asfalto e andei por mais 1h no acostamento até minha antiga cidade.
Quando cheguei na praça, não tinha uma alma viva do lado de fora das casas ou das lojas, mas sabia que as pessoas estavam próximas e me observando de longe. E eu tinha que parabenizar Nabal, ele me esconder por dezessete anos daqueles caipirinhas fofoqueiros foi realmente a maior conquista dele.
Parei na frente do meu antigo trabalho, a floricultura da cidade, onde o prefeito havia instalado um bebedouro. Pelo reflexo no vidro, dei uma ajeitada na aparência tentando abaixar alguns fios, tirar galhos e descer a blusa. E quando Jay Charles, meu antigo chefe saiu da loja para me ver, eu não imaginava a cara de espanto dele.
Tudo bem que meio que larguei emprego e conhecidos sem avisar e agora tava ali me esbaldando na água de forma bem ruidosa, mas aquela expressão de quem estava vendo fantasma já era demais. E as emoções confusas dele, como alívios e incerteza, não ajudavam muito.
— Ma Rainey, corre aqui... Ma Rainey!
E esposa do Jay, a versão dele feminina tal era a semelhança entre os dois, o que na cidade, por boca miúdas, era fruto deles serem irmão, veio arrastando os pés com seus cabelos loiros curto debaixo de um lenço, usando vestido largos em tons pastéis para manter a modéstia dos seus mais de sessenta anos, e olhos azuis afiado e pele branca rosada. Quando saiu pela porta, ela abriu a boca e deixou cair a vassoura que segurava.
— Oh grandíssimo Deus em sua misericordiosa sabedoria e proteção. — Ela me puxou para dentro da loja, a felicidade genuína ao me ver me atravessou. Ela não nunca me tratou mal antes, mas não tinha tratado bem também. — Onde você esteve? Você está bem? Como conseguiu escapar? Sabia que não tava morta. Foi os caras anti vampiros não foi? Ou foi os vampiros? Jay, liga para polícia...
Ela me ofereceu um lanche, que devorei em minutos, e me encheu de perguntas. E toda vez que reparava ao meu redor, a floricultura estava mais cheia. Havia muitos curiosos e sentimentos variados.
Há alguns meses, eu tinha ligado para o abrigo e deixei recado com a irmã Mary sobre meu paradeiro. Ela não era conhecida por ser discreta, então, até aquele momento, eu jurava que as pessoas sabiam que eu estava em Shreveport. E bem.
Foi só quando o xerife chegou e após todas as mesmas perguntas me mostrou um cartaz com minha foto em letras garrafais escrita: "desaparecida" que entendi.
No cartaz, abaixo do " Ela sumiu na noite de 03/12/2009 próximo ao cemitério de Shreveport às 22:30", estavam os números para contato de Cíntia e Belinda. Ao olhar para a folhinha do calendário, na parede do lado, marcada no dia 16/06/2010 comecei a entender a reação das pessoas. Eu não tinha passado mais que minutos no Salão do Tempo, mas fazia seis meses que estava desaparecida.
Não tinha como explicar aos policiais o que aconteceu sem criar algum tipo de pânico ou internação compulsória na área psiquiátrica no hospital central de Sainte Croix de Âmes.
O delegado, que já não acreditava em mim quando estava desmemoriada de verdade, não estava nem um pouco convencido da minha versão de " eu não lembro de nada depois que meu namorado me deixou em casa".
Mas ele não poderia fazer nada, Eu era uma vítima. Uma sobrevivente. E o registro de desaparecimento tinha sido feito em Shreveport.
E graças a influência da Irmã Margareth, não fiquei na delegacia esperando a viatura de Shreveport me buscar, ela me levou até o abrigo. Quando chegamos em seu gabinete, quase senti saudades do tempo que vivi ali e das broncas que levava dela por aprontar. Quase, pois ela foi direta, como sempre:
— Você não me engana, Lara. Nunca enganou. Menti nunca foi seu forte... O que aconteceu de verdade?
E eu contei tudo. Tudo mesmo. E a reação da irmã foi encher o copo com água e beber. Depois, sentou ao meu lado, segurando minha mão.
— Precisamos cuidar de você então, não é mesmo. Te proteger...
— Você não vai questionar, irmã? Ou...
— Ou me assustar? Todos esses anos lidando com crianças e adolescentes... é óbvio que sabia que os vampiros não eram os únicos. E sempre soube que você era especial. Fiz questão que ficasse próxima. — Girei os olhos, não me sentia nada especial. — Eu estava do seu lado quando você trouxe a vida aquele pássaro. Deus é sábio e justo.
— Não acho que seu Deus exista.
— O que chamo de Deus, você chama de outra coisa. Eu sei o que significa minha fé e ela vai além dos muros e escrituras. Você acha que está segura aqui? Que as crianças estão seguras com você aqui?
Ao longo prazo, não estavam. O que estava atrás de mim iria me achar em algum momento, então eu precisava achar essa coisa antes e terminar a maldita perseguição. Expliquei isso a Irmã Margareth, e ela deixou a chave do carro dela em cima da mesa, e como quem não quer nada, disse:
— Meu carro está abastecido, é bem velho, mas aguenta até Shreveport. Vou deixar você descansar aqui no gabinete, daqui a meia hora mando a irmã Mary trazer sua refeição; Ah, sabe aquela parte do muro que você usava para fugir com a Cintia? Ainda não fechei... Manda lembranças para ela.
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Das cinzas
FanfictionOs vampiros saíram dos caixões e estão vivendo em sociedade mesmo contra a vontade de alguns humanos. Ao completar 21 anos, com muita coragem e pouca noção, a amnésica Lara Doe chega em Shreveport atrás do único que ela acredita ter a chave para...