Cinzas

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Manhã morna. Meu peito se aquece, os olhos expostos, ardem, quando não entreabertos. A pele, irradiada, me traz de volta à vida,  algo que por muito tempo esperei.
Brasas surgem, se espalham. Brandas, se instalam e tentam, insistentes, que centelhas se esoalhem e reanimem a carcaça do que outrora fora um ser humano feliz.
Eis que a primeira chama surge, pulsante, quente, viva, suficiente para que se ilumine minimamente os becos mais escuros da minha alma, suficiente para que eu enxergue minhas angustias, há muito enterradas e esquecidas, mas que apodreceram e contaminaram qualquer alegria que tenha habitado meu ser
Mas eu queimei-as. A chama se alastrou, o arder da vida ressurgiu. O que era um abismo escuro, agora é uma cratera exposta a uma luz ofuscante. O que era treva e me atentava por dentro, agora é cegueira e me tenta por fora. No escuro, nada de vê. Na luz, os olhos não se abrem.
Não havia meio termo. Tudo queimava. Meu peito ardia, meus ossos rachavam, a pele se deteriorava. O incêndio teve início e nada dentro de mim escapou. A alta temperatura me fez buscar refúgio em qualquer lugar que me fosse permitido lidar com minha condição. Seria bem vindo qualquer um que me ensinasse a conter a energia dentro de mim.
Mas, ninguém veio. Nenhum lugar me acolheu. Eu não podia me atirar ao rio e extinguir o que quer que estivesse dentro de mim. O desespero por não conseguir conviver com aquilo era enorme. Por anos, busquei novamente a vontade de viver, mas, agora, não sei portar essa responsabilidade, tampouco essa alegria.
A temperatura voltou a baixar. O combustível estava por acabar. O oxigênio esvaiu-se, lentamente. O incêndio retornou à forma de chama simpática, e esta, pouco a pouco, passou a ser brasa.
O ardor permaneceu por algum tempo. Os olhos puderam se adequar à claridade. Pude ver a devastação causada pelas labaredas. Não posso chamar isso de inferno. Não foi tortura. Foi um inébrio viver. Tal como uma droga, de efeito catastrófico e duração curta.
Cinzas. Elas sempre permanecem. Restos deixados por um ser que já não existe mais. Um dia, talvez, o sopro da vida as espalhem por aí. Talvez, leve para longe todo esse condensado do meu pesar. Talvez, espero, o vento desapareça com tudo isso que vivi.

Essa toca que chamo de quartoOnde histórias criam vida. Descubra agora