Manchinha

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Estava lá, aquela manchinha na parede. Malcriada. A cadeira da sala deve ter esbarrado e deixado a tinta para trás. Uma pontinha preta em uma parede branca, roubando toda a cena. As flores não tinham mais aroma, a capa do sofá não era mais colorida, o piso não era mais reluzente. Nada importava, já que a maledeta incomodava o olhar. Insistentemente pensei em tentar limpar. Ou, ao menos tentar. "Amanhã faço isso".


Era a mancha na parede, a poeira da estante, o lençol enrugado, a mesa desalinhada, o quadro trincado. Deixei para amanhã. Já não sei mais quantos dias fazem que eu deixei pra amanhã. Chega até a ser contraditório. Tudo me faz querer que o amanhã apenas chegue. Todas minhas obrigações estão no amanhã. E eu quero fugir das obrigações. Como eu faço para fugir do amanhã?


Só tinha uma coisa que me incomodava mais que aquela manchinha na parede: a porta de casa. Toda vez que eu entrava e ela se fechava atrás de mim, aquele barulho de metal e trincos se trancando eram torturantes. Era o único som que ecoava pelas paredes, como uma risada maléfica. Rindo da minha solidão, dos cantos vazios da minha casa, da manchinha na parede. Doía no fundo da alma. Não é fácil fugir disto. É terrível ignorar o fato de que tudo está indo contra nossos planos. Estar com a corda no pescoço pareceu ser a saída para fugir do amanhã, mas não resolve. Existem saídas melhores, nós apenas precisamos procurar. É difícil, cansativo. Parece que não tem jeito.Mas tem. Eu, você e todo mundo, somos muito mais fortes do que imaginamos. Nós precisamos muitas vezes apenas de dar um passo. Eu comecei limpando aquela manchinha na parede. E você, já sabe qual manchinha precisa limpar primeiro?

Essa toca que chamo de quartoOnde histórias criam vida. Descubra agora