Nossos monstros

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Hoje foi um dia meio triste. Não para mim, mas para algumas pessoas. Um atropelamento quase matou um casal e por pouco não causou lesões aos seus filhos. Dois garotos, não deviam ter mais que doze anos. Até seus pais aparentavam serem jovens.

Estava na janela de casa, levemente comovido, puxando uma lasca de unha enquanto observava a cena. Pode me chamar de insensível, mas nunca consegui sentir grandes apertos no peito por qualquer situação de caráter lastimável. Na realidade, o que me entristecia de verdade era olhar a tristeza dos outros, não aquele casal à beira da morte e seus filhos ao lado chorando.

Decidi olhar mais de perto, talvez pudesse ajudar com algo. Saí da janela, coloquei uma blusa e fui até a porta. No instante que toquei na maçaneta ouvi um carro se aproximar. Ao sair, notei o desespero estampado na cara do sujeito que desceu do automóvel. Era um "Uninho" mil, de cor branca. O rapaz perguntou o que aconteceu. Uma mulher contou que um motorista não respeitou a sinalização e passou em alta velocidade pelo sinal vermelho, atropelando os dois e por pouco não pegou as crianças. Disse que o desembestado manteve a velocidade e seguiu adiante como se nada tivesse acontecido, deixando os dois para trás.

O rapaz que descera do Uno estava inconformado e aos prantos. Logo descobrimos que se tratava do irmão daquele que havia sido atropelado. Ele rogava aos céus que o homem que causara aquele acidente fosse arrastado para o inferno. Perguntou para Deus porque aquilo aconteceu justo com o irmão dele.

Eu pensei "E por que não?". Se um acidente estava planejado para acontecer, por intervenção divina ou coisa do tipo, poderia ser com qualquer um. Nessas horas você percebe que, bem lá no fundo, o ser humano é uma criatura bem egoísta. Meio que queremos que os outros se danem, desde que a nossa integridade mental e física seja mantida. O rapaz falava aquilo como se fosse completamente irrelevante o mesmo acidente ocorrer com outra pessoa.

Em certo momento, a mesma mulher que contou o ocorrido falou algo para tentar consolar: "Alguns demônios vagam pela terra, as almas boas são as que mais sofrem com isso". Talvez fosse verdade. Mas as cenas seguintes foram as que realmente me intrigaram. Todas as pessoas tentaram consolar o rapaz e as crianças, enquanto espremiam mais e mais metáforas e explicações para o ocorrido. Nem os paralelepípedos da rua escaparam. Eu ouvia tudo balançando a cabeça em sinal de negação, desacreditando no nível que a estupidez humana chega.

Então, o ápice, quando o SAMU chegou para o socorro. Após receberem os primeiros socorros, homem e mulher foram colocados cada um em uma maca e levados até a ambulância. Os socorristas perguntaram sobre as crianças. O irmão do sujeito atropelado informou que iria levá-las para casa por enquanto. Então, momentos depois da Unidade Móvel partir, todos que estavam ali saíram andando. Olhando de relance parecia que nada havia acontecido, exceto pelo choro descontrolado de um dos garotos enquanto caminhava para o Uno de mãos dadas com o tio.

Eu estava incrédulo. Com aquele sentimento de "Como pode?" no peito. Não ouvi nenhuma alma ali agradecer o pessoal do SAMU pelo socorro, nem o irmão do rapaz. Talvez o casal estivesse lúcido o suficiente para isso, mas eu nunca irei saber. Mas nesse momento me lembrei da mulher mencionando os demônios que vagam por aqui. Os demônios, no caso, são as pessoas ruins, segundo o ponto de vista dela. E com certeza esse é o mesmo pensamento que os demais presentes cultivam. Assim, você percebe que de certa maneira todos semeiam o mal, mesmo que indiretamente. Fazem isso dando espaço para ele nos pequenos detalhes, como quando ignoram a presença de seres iluminados.

Vai entender. Não vou ser hipócrita, eu tenho os meus demônios para culpar quando preciso. Todos têm. A diferença está na intensidade que nós colocamos em cada um deles. Os meus demônios menores são a falta de sono e a falta de café. Nos damos bem, até. Quando o primeiro ataca, significa que terei um tempo livre à noite.

Mas não são todos que sabem como lidar com seus demônios. Alguns preferem trancafia-los em algum lugar e fingir q não existem. E não são monstros pequenos, esses. São o ego, a ganância, a ignorância e vários outros. Um dos meus maiores talvez seja a indiferença.

Enquanto pensava, deu tempo de todos que estavam na rua sumirem. As pessoas que circulavam por ali agora estavam quase completamente alheios ao acidente. Se não fossem três senhorinhas conversando próximo a algumas marcas se sangue, as outras pessoas não saberiam do ocorrido. Uma delas falou: "Cuidado, tem um louco dirigindo por ai!". Fez um breve resumo sobre o que aconteceu pra uma jovem que perguntou sobre o sangue.

Decidi entrar e fechar a porta. Era fim de tarde, o Sol já havia se escondido. Fui até a cozinha preparar um café. Durante o preparo continuei refletindo sobre o ocorrido. E assim fiquei, sorvendo meu café calmamente, mandando embora um dos meus pequenos demônios.

Essa toca que chamo de quartoOnde histórias criam vida. Descubra agora