Capítulo 30- Chegada

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Lura

Partir novamente para a grande cidade me fez recordar do passado, o medo e a angústia de não saber o que iria encontrar naquele novo mundo veio a tona, só que desta vez era diferente. A sensação sufocante de saber que ele a tinha escolhido, que depois de tudo ele haveria de se casar com Beatriz era insuportável, eu queria que Nwando pagasse por toda aquela dor, por ter revirado a minha vida e me descartado no segundo seguinte. Engoli o choro deixando o ar sair pela boca embaciando a janela do autocarro, lembrando da noite passada, quando anunciei a minha partida.

Flashback on:

— Eu vou voltar para Maputo amanhã. — falei de uma só vez recolhida no sofá enquanto assistiamos a novela, ninguém se virou para me encarar, como se já estivessem a espera disso acontecer. O silêncio preencheu o ambiente e apenas o barulho da tv se fazia ouvir. Minha mãe se remexeu no sofá desconfortável mas não olhou para mim, achei por um segundo que talvez tivesse falado baixo demais e ninguém me tivesse escutado, pelo que repeti:— Meus patrões precisam de mim, vou voltar à Maputo amanhã.— engoli em seco, apenas Leila se virou para mim e com a voz trémula perguntou: — Quanto tempo vai ficar lá em Maputo mana?

— Achas que ela vai voltar?— perguntou Pindile rindo de escárnio, ela então virou-se para mim com os olhos marejados, senti um aperto no peito.— Pindile...— tentei falar mas ela não me deixou terminar.— Lura só se importa consigo mesma.— ela se levantou irritada, Leila começou a chorar aos prantos.— Eu sabia que ela não iria aguentar ficar aqui por muito tempo, não é mesmo?

— Pindile...— alertou nossa mãe mas ela não se importou.

— Acha que não sabemos o que você fazia lá na cidade? Você pode enganar a mamã e a Leila, mas a mim tu não enganas, tu não voltaste para casa porque tu te importas conosco, alguma coisa aconteceu lá, não foi? E nós éramos o último lugar que te restou, não foi? — engoli em seco sentindo a garganta se fechar, as palavras dela eram como agulhas que feriam a minha alma.

— Tu não tens noção do que tu estás a falar.— respondi levantando para encara-la de frente, mesmo que estivesse destruída por dentro, eu ainda era a sua irmã mais velha.

— Ai sim? Então responde a pergunta da Leila, quanto tempo vai ficar lá? Quando volta Lura?— ela cruzou os braços e as três me encararam, hesitei em responder, na verdade eu não sabia sequer se iria voltar, eu amava a minha família mas depois de tudo que havia vivido e visto, eu não conseguiria me conformar com aquela vida, eu queria mais, eu merecia mais.

— Viu só! Eis a vossa resposta.— Leila saiu correndo para o quarto a chorar e nossa mãe foi atrás dela, Pindile sorriu de escárnio e chegando perto de mim falou com raiva:— Eu disse para não magoa-las de novo, mas tu não consegues fazer nada direito, eu espero que tu te vás embora Lura e não voltes mais, deixa-nos em paz, tal como estávamos antes de tu voltares.— ela já ia sair mas eu segurei em seu braço fazendo-a olhar para mim, Pindile me encarou surpresa.

— Olha aqui, eu tentei entender o teu lado e ser paciente contigo mas tu passaste dos limites faz tempo. Tu te armas em adulta e te fazes de vítima nesta história quando só és uma criança birrenta e invejosa.— ela tentou se soltar mas eu segurei forte:— Tu não paraste um segundo para ouvir o meu lado da história e mesmo que eu te contasse, tu não irias ouvir, sabe por quê? Porque tu precisas duma vilã para justificar todas as coisas más que aconteceram contigo e não encara-las de frente. Então faz de mim a vilã, se tu quiseres.— soltei o braço dela com desdém e ela cambaleou.

— Usa-me como desculpa para todo o abuso que os nossos pais fizeram contigo.— apontei para o meu corpo e abri os braços como que a espera que mil flechas trespassassem o meu peito.— Tu achas que a tua vida foi difícil Pindile? Porque tu tiveste que virar a irmã mais velha e ser a filha perfeita?— fiz voz de menina mimada e ri de escárnio recuperando o fôlego:— Eu fui vendida caramba, eu fui vendida com os meus quatorze anos como empregada doméstica para sustentar a todos vocês, as pessoas que deveriam me amar e proteger me entregaram para ser explorada por estranhos em troca de dinheiro. Eu vivi um inferno naquela casa, eu era tratada como uma escrava e  quando eu escapei daquela casa e vocês já não tinham mais sustento às minhas custas, me viraram as costas.— a voz falhou mas continuei firme, Pindile olhava para mim pasma demais para interromper:— Eu era uma criança, sozinha na grande cidade, sem nenhum adulto para interceder por mim, eu fiz o que eu pude para sobreviver e não me arrependo de nada.— ergui a cabeça.— Então se te faz feliz me usar como subterfúgio fique a vontade, mas eu não vou continuar a procurar validação de nenhum de vocês, vocês não sabem nada do que eu passei e se vocês não estão prontos para me aceitar como eu sou, então por mim tudo bem, continuem a fingir que eu morri como vêm fazendo há seis anos.— Pindile não respondeu, passei por ela batendo em seu ombro e saí da sala pronta para fazer minhas malas, mas quando ia cruzar o corredor encontrei minha mãe chorando em silêncio encostada á parede, ela havia escutado tudo provavelmente e era bem feito. Não a abracei e não tentei consola-la. Passei por ela como se não a tivesse visto, ela se fazia de indefesa mas ela não se opôs a nenhuma daquelas barbaridades  e quando mais precisei dela, ela ignorou as minhas chamadas, e continuava a evitar aquela conversa sobre o meu passado por duas semanas, eu duvidava que em algum dia nós fôssemos falar sobre o tópico sequer.

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