Capítulo 2

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Moldei-me a imagem e semelhança das minhas obsessões. Nunca tive um meio termo, onde se fica naquela área cinza entre a fixação de uma ideia, obstinada a algo, e o desinteresse. Para mim sempre foi um ou outro, como se não tivesse escolha a não ser optar pela indiferença caso a compulsão falhasse.

Fiz isso em cada área da minha vida, e por mais que eu lutasse contra esse traço da minha personalidade, nunca consegui superar esse fato que me perseguia a cada passo.

Acho que por isso danço até hoje. No início foi uma fuga; a escola em que eu estudava oferecia projetos sociais, e o balé era um deles. Quando entendi que estar ali era uma oportunidade de não estar em casa, agarrei essa saída como se minha vida dependesse disso, e me escorei nessa realidade a fim de fugir de uma rotina que me desagradava. Entretanto, a diligência quanto aos meus movimentos começou. Cada passo deveria ser perfeito, e eu tinha que ser a melhor.

Pensava, continuamente, na dança. Chegava a ser intrusivo, e eu não sabia lidar com isso, principalmente por ser nova demais para moderar meus excessos. Entendia que era o hábito da repetição que acabou me levando a Sartre e, logo, para a Companhia Maurice Beauvoir, mas seu custo alto me tomou tudo ao mesmo tempo em que sua ausência me trazia um amontoado de nada, obrigando-me a lidar com o eco que havia em minha vida.

Acho que sou nada mais que minhas obsessões, e eu colecionava muitas, porque sempre desgostei do silêncio, porque o balé ocultava a escuridão do meu passado, que vivia à espreita, aguardando que eu me lembrasse dele.

Encontrava-me agora a caminho de mais um ensaio. Quase um mês inteiro havia se passado desde o estabelecimento da minha nova rotina, e agora ela já era outra. Isso me trazia certa inquietação.

Acostumei a estabelecer hábitos, e regulava meus passos desde de muito cedo para adequar minhas necessidades aos meus anseios; o que eu tinha que fazer, e o que eu queria fazer.

Como, por exemplo, eu tinha que ser obediente e submissa em casa, aceitar as coisas. Meus primos me colocaram para trabalhar no Drax, um bar de merda que eles usavam para disfarçar o fato de que vendiam cocaína e oxi. Contudo, eu queria dançar, então, mesmo que demandasse um esforço absurdo, ainda que exausta, eu ia para as aulas na companhia que passei a frequentar após a professora do projeto ver potencial em mim e arranjar uma audição de admissão.

A dualidade do ter e querer fazer, levava-me a estipular horários, e o poder do hábito me levou ao lugar que eu estava hoje. Por isso, ao me deparar mais uma vez com mudanças significativas na minha rotina, fiquei especialmente mal humorada, mesmo que já soubesse previamente que isto aconteceria quando a companhia determinasse o que seria apresentado na nova temporada.

Mentiria se dissesse que desgostava dos deslizes, aquela coisa boa que cresce dentro do peito quando se faz algo que não é habitual, todavia, esse tipo de atitude só se tornava especial por culpa da sua falta de constância, então eu não me achava alguém que ansiava pela novidade com qualquer tipo de fome. Pelo contrário.

Minha vida nunca foi do tipo estável. Penso, que por esse motivo minha maior ânsia sempre foi a segurança. Meus receios rondavam pela incerteza; o fato se o dinheiro seria o suficiente, se o tempo seria o suficiente, se meu corpo suportaria o suficiente, se eu faria o suficiente. Agora, de cara com essa nova realidade — que me parece tão estranha comparado aos meus antigos dias —, me pego refletindo por muitas vezes sobre como tudo ficou monótono quando finalmente cheguei onde há muito tempo lutei para estar. Crescer num ambiente caótico acabou por me render tédio profundo ao me deparar com a tranquilidade que a independência me trouxe, e o esse fato, somado à mudança de rotina e ao esforço constante, não me agradava, embora fosse tudo que um dia eu quis.

Como Fogo e Pólvora | SASUSAKUOnde histórias criam vida. Descubra agora