Dizer que eu me lembrava vagamente dos acontecimentos da noite passada seria uma grande mentira, pois eu me lembrava de cada detalhe. Minha cabeça doía, o que também não deixava de ser um lembrete.
Me levantei sem saber como iria encarar o Capitão Gancho da livraria o qual eu ainda desconhecia o nome e tive uma ideia enquanto comecei a me arrumar.
Passei em uma cafeteria no caminho para a loja e pedi dois cafés com creme para a viagem. Levaria a bebida para ele em forma de agradecimento. Aquela atitude gentil quitava uma possível dívida, certo?
Entrei na livraria para entregar o café antes que esfriasse. Abriria a loja depois que a missão fosse cumprida. Ele estava atendendo um cliente quando entrei e apenas me lançou um olhar. Não um olhar do tipo comum, mas um carregado de segredos que não fui capaz de decifrar.
Um tanto desconcertada, dei as costas para ele na intenção de desbravar o lugar e não pensar no quanto aquilo havia sido estranho. Estantes repletas de livros tomavam as paredes do lugar. E no meio havia um expositor com livros colocados em pequenos suportes, eu imaginava que deviam ser os mais vendidos ou os lançamentos.
Em um canto havia uma mesa redonda com cadeiras. No lado oposto havia um cantinho de leitura bastante descolado com pufes e poltronas coloridas. Como ler não era algo que me atraía, me imaginei sentada ali com meus fones de ouvido curtindo o som de Ella Fitzgerald.
Quando finalmente ficamos sozinhos, eu me aproximei do balcão e lhe estendi o copo de café que, naquele momento, era para mim a personificação da bandeira da paz.
— Suponho que isso signifique — disse ele fazendo aspas com os dedos — "Obrigada por não me largar em um estado de sobriedade duvidosa em um bar prestes a fechar". — Pegou o copo em seguida.
Então ele tinha senso de humor? Revirei os olhos em resposta enquanto ele levava o copo aos lábios. No segundo seguinte, ele fez uma careta como se eu tivesse lhe dado veneno ao invés de um delicioso café com creme.
— Argh, isso tem creme! — reclamou fazendo cara de repulsa.
— Como ousa falar isso? No código moral de boas ações, não tinha nenhuma advertência sobre café com creme, além do mais é o meu preferido. E quem, no Universo, não gosta de café com creme? Para mim, boa pessoa não deve ser. — Fiz cara de brava e dei de ombros ao mesmo tempo.
Ele gargalhou, e o som ecoou por toda a livraria para, finalmente, morrer em mim como uma nota musical hipnotizante. Me forcei a desviar os olhos dele e foquei na parede logo atrás onde lia-se: "A leitura engrandece a alma – Voltaire". Então, ao que parecia, o pirata de nome não identificado também fazia a linha cult, pensei.
— Meu avô era um grande fã do Voltaire — explicou quando percebeu que a frase na parede tinha prendido minha atenção.
Na verdade, não era bem isso, mas que bom que pareceu.
— Legal! — murmurei sem ter a mínima ideia de quem era aquele. — Bom... — fiz uma pausa calculadamente a fim de que ele se apresentasse.
— Thomas — ele apressou-se em dizer.
Não pude deixar de pensar que o nome combinava com ele.
— Então, Thomas, tendo você gostado ou não do café acredito que estejamos quites.
— Sim, estamos, o que vale é a intenção...
Como ele deixou a frase morrer, era a deixa para que eu me apresentasse.
— Esther. Agora, se me dá licença, preciso abrir minha loja. — Me encaminhei para a saída.
Ele tossiu chamando minha atenção e eu me virei.
— Será que dá para você ouvir seu jazz em um volume moderado?
— Acho que posso fazer isso. — Pisquei para ele e me virei saindo da livraria.
Mentalmente, eu fiz uma dancinha da vitória, era a primeira vez em dois encontros que eu finalmente lhe dava as costas.
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Jazz, livros e o amor no meio disso
RomanceEsther Blossom respira música, já Thomas Castillo inspira livros. O que esses dois têm em comum além de traumas do passado? Esther é uma mulher forte que já sofreu muito e encontrou nas divas do jazz um reconhecimento e uma fonte de inspiração. Vivi...