Capítulo 24

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Não deixei que Thomas me acompanhasse até em casa como na noite passada, agradeci mais algumas vezes, coloquei o livro na cesta da bicicleta e saí pedalando para o mais longe possível do Capitão Gancho da Livraria. Eu estava me simpatizando com ele, na verdade era bem mais do que isso. Não era recomendável que eu me simpatizasse com ele e muito menos mais do que isso.

                                                                              ***

Saí da cama na manhã seguinte me arrastando para o banheiro perdida em pensamentos. Kate havia me ligado me intimando para uma corrida matinal no parque. Não me fiz de rogada ao convite, precisava desabafar com minha melhor amiga sobre os últimos acontecimentos.

Coloquei um short e um top, prendi minha cabeleira crespa em um coque. Calcei meu tênis, enchi a garrafa d'água e saí rumo ao parque para encontrar Kate.

O City Park era tranquilo e verdejante, ideal para escapar do agito característico da cidade. Era um paraíso notável com cursos de água exóticos, pontes, clássicos pavilhões, carvalhos centenários, plantas tropicais, jardins de esculturas e uma estufa, um parque do século XIX e carrossel raríssimo. Incluindo ainda um impressionante museu de arte, que possuía uma coleção de artes impressionistas francesas, Louisiana, africanas e americanas.

Eu não frequentava muito essa parte da cidade, exceto para andar de bicicleta na estação de bicicletas vez ou outra. Geralmente meu percurso era de casa para a loja, da loja para os bares para assistir a shows do bom e velho jazz. Portanto, seria bom fazer algo diferente só para variar.

— Esther, animada para nosso incrível fim de semana? — perguntou ela assim que colocou os olhos em mim.

— Se você prometer que não iremos correr além da conta, sim, eu estou! — respondi abraçando-a.

— Que tal uma hora correndo e uma hora pedalando? — propôs ela.

— Gostei da ideia!

O parque estava repleto de pessoas, em sua maioria turistas, mas, ainda assim, era um paraíso uma vez que não tinha o barulho dos escapamentos dos ônibus e outros veículos. Nos atiramos, estiradas, na grama exaustas assim que terminamos nossa pequena maratona.

Respirei fundo algumas vezes a fim de recuperar o fôlego para começar a contar a Kate sobre Thomas. Aproveitei que ela bebia água para despejar meu drama sem fazer pausas.

— Estive com Thomas ontem à noite — comecei. — Ele estava indo na minha casa quando me viu na Verti Marte. Ele entrou, se sentou e comeu comigo, acredita?

— Então vocês tiveram um encontro? — inquiriu ela

— Não, definitivamente não foi um encontro — afirmei com veemência e Kate arqueou as sobrancelhas em resposta.

— Ele queria apenas me entregar o livro...

— E ele acertou na escolha da obra dessa vez? — Me interrompeu ela.

— Infelizmente sim. Ele me deu um livro da Maya Angelou. — Me esforcei para reprimir um sorriso, mas não tive sucesso.

— Qual deles? — quis saber ela.

— E isso importa?

— Mas é claro que sim, estamos falando do livro que, possivelmente, será o primeiro que você vai depois que nos formamos.

Revirei os olhos em resposta embora soubesse que Kate tinha razão.

Eu sei porque o pássaro canta na gaiola — informei o título.

— É a obra mais relevante da My, sua primeira biografia — me esclareceu Kate.

Suspirei derrotada, pois Kate, ao que , não compreendia meu dilema.

— Esther, qual é o problema se ele finalmente acertou na escolha do livro? — indagou ela, exasperada.

— O problema é justamente esse, — respondi impaciente. — Thomas não deveria ter feito isso, me dado um livro que fosse significar tanto para mim.

— E por que não? Foi muito da parte dele — exclamou ela com clara admiração.

— Você não se lembra do colegial? — inquiri aborrecida.

— É claro que eu me lembro, como poderia esquecer? Pelo jeito, parece que quem esqueceu foi você.

— Ainda assim, nós ocupamos lugares completamente opostos racial e socialmente — argumentei.

— Eu não sabia que você era contra relacionamento inter-racial Esther! — falou, surpresa — Entretanto, com a atração estratosférica e claramente notável que sente por ele, é um pouco tarde para se preocupar com isso, não acha? — disse ela com um sorriso de escárnio.

Grunhi frustrada, pois Kate estava coberta de razão. E consternada acabei revelando o que de fato me afligia. Ainda que isso expusesse um medo que eu tentava esconder de todo mundo, até de mim mesma.

— Eu não sou contra relacionamento inter-racial. Já fiquei com homens brancos e negros, simplesmente porque estava afim. Não é essa a questão. — Dei de ombros para não parecer tão . — Mas com Thomas é diferente, tem algo nele que é como um imã que me puxa, que me impele para ele e que, ao mesmo tempo, me amedronta com tudo, que houve no colegial não sei se devo confiar nele.

Kate mudou sua postura ficando mais séria à medida em que eu prosseguia:

— Homens como ele tendem a nos preterir e não venha me dizer que não. Nos querem para sexo, diversão. Mas nos assumir em público como namorada oficial, jamais. Eles nunca aparecem de mãos dadas com uma mulher preta, somente com mulheres brancas, que são socialmente aceitas e consideradas dentro de um padrão de beleza estereotipado.

— Mas o Thomas pode ser diferente você não perde nada dando uma chance a ele — ela.

— Seria tão mais simples se ele não fosse quem é. Porque, inconscientemente, é como se eu achasse que não mereço ser amada tanto pela minha negritude, da qual eu me orgulho, por favor não me entenda mal, mas principalmente por ter sido abandonada em um orfanato — confessei por fim.

Kate me encarou com uma expressão fraternal antes de começar a falar. Seu olhar doce e, sobretudo, de quem compreendia meu dilema era reconfortante:

— Esther, eu entendo você mais do que imagina e não a julgo por se sentir assim. A sociedade nos faz pensar que não somos dignas de sermos amadas. A opressão é sofisticada e por causa disso validamos conceitos distorcidos. — Ela buscou minha mão e a segurou com antes de continuar: — Nós, e com certeza as que nos precederam, sofreram com o padrão de beleza imposto. Sempre estivemos em uma espécie de limbo e por isso você, eu e muitas mais de nós acreditamos sermos inferiores.

Eu estava inebriada com o que Kate dizia. Eram palavras fortes e potentes. Que me esclareciam e me fortaleciam ao mesmo tempo.

— Não somos inferiores, longe disso, as divas do jazz em que você tanto se inspira são prova disso. Somos resistência, Esther, somos luta. Há algum tempo li um poema que dizia: "Como você ama a si mesma é como você ensina todo mundo a te amar". A autora, uma poetisa indiana, se chama Rupi Kaur. — Ela respirou fundo antes de prosseguir: — Então não duvide de você, das suas ancestrais, das que vieram antes de nós. Não se esqueça de que você é inspiração para muitas garotinhas negras como nós já fomos um dia. Seja uma mulher negra que levanta outras mulheres negras. E se o amor estiver na sua frente, agarre-o!



                                                                          ***

Não se esqueçam de curtir e comentar, vou adorar saber qual a opinião de vocês a respeito desta história!

 Ps: este é um dos meus capítulos favoritos do livro, a conversa entre a Kate e a Esther é carregada de significados porque aborda sentimentos que só mulheres pretas entendem, já que sentem na pele. E eu enquanto mulher preta escrevendo a respeito dessas vivências me sinto conectada com cada mana. 

Jazz, livros e o amor no meio dissoOnde histórias criam vida. Descubra agora