— Olha eu não consigo me reconhecer e muito menos me sentir representada em um livro que parece ignorar minha existência e a existência do meu povo. — Tomei fôlego para prosseguir com meu argumento. — Nunca li e confesso que ao ter assistido ao filme me senti mais excluída ainda. É por isso que não leio, não apenas por não gostar de ler, mas por ver que a maioria das histórias tem um casal branco e perfeito e que parece não ter nenhum problema e muito menos saber o que é ser desprezado pela cor.
— Esther, me perdoa, nunca havia parado para pensar por esse lado!
— Tudo bem, só quero que saiba que não me interessa nem um pouco ler um livro escrito por um homem branco, que fala sobre a ascensão de um homem branco, entende?
— Mas e-eu... sou m-mesmo um i-idiota por te dar esse livro — disse Thomas aborrecido. — Você pode me dar um tempo para pensar em um livro em que v-você se sinta representada e que ainda te f-faça se apaixonar pelo universo l-literário?
— Ah, mas não é culpa sua, então não se sinta culpado! Livros não me fascinam como a música faz. Na verdade, eles são para mim um ótimo sonífero, na primeira linha já apago — brinquei.
Como essa conversa estava ficando íntima demais para o meu gosto e ainda correndo o risco de virar uma grande polêmica, aproveitei que estava entre Thomas e a porta de entrada do loft. Foi fácil me despedir e correr para dentro sem deixar margem para mais argumentos. Isso mesmo! Fugi como uma covarde só para não ter que ficar mais perto de sua presença intimidante e sua conversa, que me fazia querer jogar minhas convicções para o alto e atacá-lo.
***
Naquela manhã resolvi trabalhar de bicicleta, fazia muito tempo que eu não pedalava. Prendi minha bicicleta a um poste colonial e entrei na The Drum's para mais um dia de trabalho. Me sentia um pouco cansada, pois não havia dormido direito. Revirei na cama na maior parte da noite pensando no pirata da loja ao lado. Não havia como negar a atração que eu sentia por ele, mas, aparentemente, ela não se sobrepunha a todas as nossas gritantes diferenças, isso ficou bem óbvio com sua tentativa de me presentear. Vivíamos em uma sociedade na qual ocupávamos lugares completamente opostos.
Liguei meu toca-discos como de costume e me senti bem melhor assim que a voz de Nina Simone ecoou por toda a loja. Mal peguei a vassoura para começar a limpá-la quando a primeira cliente do dia entrou, pena que vim a descobrir que a loira estonteante não era uma cliente em potencial.
— Bom dia, posso ajudá-la? — perguntei.
— Na verdade não, entrei aqui apenas para matar o tempo. Estou esperando a livraria abrir — respondeu meio envergonhada.
— Tudo bem, fique à vontade. — Optei por tirar poeira dos instrumentos uma vez que continuar a varrer seria falta de educação.
Senti que a moça me observava e corri os olhos pela minha roupa discretamente procurando algo de errado, mas não encontrei nada. Eu usava meu habitual jeans, vestia uma camisa preta de mangas curtas com um microfone retrô dourado estampado e tinha os cabelos presos com uma bandana preta. Porque simplesmente meu day after não foi o que eu esperava naquela manhã, divaguei. Enfim, nenhum pássaro havia cagado em mim e eu também não estava com a roupa rasgada, pensei ainda sobre o escrutínio da jovem.
— Você trabalha aqui? — ela me perguntou.
— Não, eu sou a dona da loja — respondi orgulhosa.
Ela arregalou os olhos no mesmo instante, sem se preocupar em disfarçar a surpresa. Nenhuma novidade para mim, as pessoas costumavam reagir daquela maneira quando descobriam que uma jovem negra era dona de um negócio como aquele. Era normal se assustarem quando não nos encontravam em uma posição servil, como era esperado para nós, negros.
Um silêncio desconfortável recaiu sobre nós e eu me vi forçada a quebrá-lo, uma vez que o preconceito partira dela e não de mim. E ainda tinha gente que abria a boca para falar sobre racismo reverso.
— Então você gosta de ler? — indaguei.
— Para ser sincera não, eu venho apenas para flertar com o dono da livraria.
Revirei os olhos no mesmo instante.
— Você o conhece? É claro que conhece! — disse ela perguntando e respondendo ao mesmo tempo.
— É, eu conheço o Capitão Gancho da livraria! — disse mais para mim mesma aparentemente alto o bastante para que ela ouvisse e gritasse em resposta.
— Ótima analogia, ele é mesmo um pirata gostoso, que deve ter assaltado os sete mares atrás de calcinhas — exclamou eufórica.
— Isso soa meio psicopata — falei meio incomodada. — Talvez ele tenha navegado os sete mares despedaçando corações. Não que eu me importe, é claro.
A garota olhou para o relógio na parede atrás do balcão e se encaminhou para a saída apressada.
— A livraria já deve estar aberta, então até mais. Ah, muito prazer. Eu sou a Hannah — disse ela com um aceno.
Acenei em resposta, mas me abstive de me apresentar. Achei que não carecia de trocar figurinha com uma fã declarada de Thomas, ela poderia querer fazer a The Drum's de ponto de vigia. E Nossa Senhora das Insulanas Desavisadas que me livrasse de algo assim.
Perdida em conjecturas, não percebi que Hannah ainda permanecia na porta quando ela me chamou.
— Me desculpe por tê-la confundido com uma atendente, sabe como é, não é muito comum ver gente como você a frente de um negócio, não é nada pessoal.
Então ela saiu como se não tivesse acabado de ter uma atitude racista, na verdade ela tinha justificado a atitude, o que era ainda pior, constatei. Peguei a vassoura novamente e comecei a varrer a loja com mais força do que o necessário, movida pela mais pura indignação.
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Jazz, livros e o amor no meio disso
RomanceEsther Blossom respira música, já Thomas Castillo inspira livros. O que esses dois têm em comum além de traumas do passado? Esther é uma mulher forte que já sofreu muito e encontrou nas divas do jazz um reconhecimento e uma fonte de inspiração. Vivi...