O despertador tocou e eu continuei na cama sem coragem para me levantar. Ora, aquilo era um absurdo, pensei, eu era Esther Blossom, não era uma das Meninas Superpoderosas, mas era tão lendária quanto. Os dias de insegurança haviam ficado para trás.
Atualmente, eu amava meu crespo e os cachos que se formavam a partir de sua textura. Quando finalmente compreendi que minha personalidade era representada através deles, foi libertador. Cada um dos meus cachos resistiram e resistiam à imposição de um padrão permeado pelo preconceito, que sempre me fez alvo de piadas na escola. Eram parte de quem eu era assim como a cor da minha pele. Muita coisa havia mudado desde o fim do colegial. Hoje em dia, eu sentia orgulho em ser uma mulher preta. Não que fosse fácil. Quando se é órfã tudo tende a ser ruim. Quando se é órfã e preta tudo tende a ser pior, sua cor sempre chega primeiro.
Me levantei imersa em pensamentos realizando cada movimento mecanicamente. Minha solidão, minhas faltas e experiências eram uma exclusão estrutural somada a uma falta familiar. Felizmente eu havia sobrevivido. Amante inveterada do jazz, eu tinha este estilo impregnado em cada poro desde o jeito de ser a forma de me vestir. Inspirada em divas como Nina Simone e Ella Fitzgerald e em suas canções fortes e empoderadas, eu tive a ideia de comprar a loja de música na qual trabalhava, graças a uma herança inesperada de uma grande amiga. Contrariando as probabilidades estatísticas, eu havia conseguido.
Sem me ater direito ao que vestia prendi meu cabelo em um afro puff. Calcei minhas botas, peguei minha bolsa e saí consciente do ronco de protesto do meu estômago por estar pulando a primeira refeição do dia.
***
Caminhei para o trabalho fazendo planos para evitar o odioso pirata. E pensar que eu o achei sexy. Eu me perguntava como voltaria a interagir com Thomas. Não que eu pudesse definir o que tínhamos, porque, para mim, nossa relação era algo inominável. Quer dizer, aquilo sequer podia ser chamado de relação. Estava mais para convívio forçado.
Sabendo agora quem ele realmente era, eu certamente não poderia tratá-lo de modo normal, nem mesmo amigável eu diria.
Ponderei, ainda incerta sobre como proceder.
Talvez eu devesse tratá-lo com indiferença, isso realmente seria o mais apropriado. Sem dúvidas seria mais fácil se ele não tivesse uma aparência tão desconcertante. Mas, como ser indiferente a ele? O cara que habitava a loja vizinha?
Não me agradava a ideia de ter que me esgueirar pelos cantos a fim de evitá-lo.
Droga! Quanto mais eu tentava encontrar uma saída, mais longe de uma solução eu ficava.
Suspirei aliviada ao constatar que a loja ao lado ainda estava fechada, no entanto, quando abri minha bolsa para pegar a chave da The Drum's não a encontrei. Não era possível que eu fosse tão desorganizada assim, era? Revirei minha bolsa cheia de quinquilharias por mais alguns segundos e, ao confirmar que realmente havia esquecido a chave, comecei a murmurar xingamentos impróprios para aquela hora do dia.
— Bom dia! — ele disse e um arrepio percorreu meu corpo assim que ouvi a voz ligeiramente rouca a poucos metros de mim. — Problemas com a chave? — perguntou Thomas.
— Imagine! — disse sorrindo sarcástica. — Estou aqui apreciando o movimento da rua ao invés de abrir a loja.
O fitei com ar zombeteiro esperando que minha falta de educação o fizesse sair dali. Não foi o que ele fez obviamente, em vez disso, estreitando os olhos, ele sustentou meu olhar em uma muda indagação.
Claramente, no meu subconsciente, o meu mau humor nada tinha a ver com o esquecimento da chave, eu estava certa de que a culpa era totalmente dele e isso me deixava muito frustrada.
— Calma, eu só estava tentando ajudar — ele desculpou-se.
— Ajuda mais ficando calado, ou melhor, indo embora — retruquei impaciente.
Ele franziu a testa visivelmente confuso com o meu comportamento. E esse simples gesto conseguiu me irritar ainda mais, se é que era possível.
— Como? — questionou ele.
Os segundos pareceram congelar enquanto Thomas me encarava com ar especulativo. Então me dei conta de que eu sabia quem ele era, mas que ele não tinha a mínima noção de quem eu era. Não estava nos meus planos, mas decidi revelar na esperança de que assim ele me deixe em paz.
— Você não se lembra de mim. Eu sou Esther Blossom. — Tentei buscar algum traço de reconhecimento em sua expressão. — Sim, aquela garotinha da qual você e seus amigos costumavam zombar. — Fiz uma pausa colocando as mãos na cintura. — Isso é motivo suficiente para você?
Thomas se enrijeceu de forma perceptível arregalando os olhos em choque.
Ele me encarava atônito e o que eu via passar em seus olhos era um misto de assombro e culpa à medida que ele parecia se recordar. Algum tempo depois, ele assentiu e sua expressão era tão desolada, que quase fiquei com pena, quase. Então, ele se virou e entrou na livraria me deixando sozinha.
Não se esqueçam de curtir e comentar vou adorar saber o que estão achando da história até aqui, até mais!!
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Jazz, livros e o amor no meio disso
RomanceEsther Blossom respira música, já Thomas Castillo inspira livros. O que esses dois têm em comum além de traumas do passado? Esther é uma mulher forte que já sofreu muito e encontrou nas divas do jazz um reconhecimento e uma fonte de inspiração. Vivi...