Quando Kate foi para a faculdade, eu ainda não sabia o que iria fazer da vida. Sair do orfanato era a minha única aspiração. Ao contrário dela, eu não tinha pais amorosos me encorajando a seguir meu sonho. Não que eu tivesse um naquela época de qualquer forma.
Não que eu estivesse reclamando, eu estudava em uma escola particular graças a uma bolsa que havia conseguido. A disparidade era gritante considerando que eu saía de um bairro pobre onde ficava o orfanato e ia para um bairro nobre para estudar. Era no caminho da escola e também dentro dela que eu sentia o peso do racismo.
Depois que saí do orfanato trabalhei como garçonete, faxineira e atendente em uma loja de música. Durante um bom tempo, o único luxo que eu me permitia era comer. E claro sair para dançar, contanto que fosse de graça. Consegui alugar um quarto em uma pensão. Isso, sem dúvidas, fez toda a diferença em minha vida! Quis o destino que a dona da pensão fosse uma mulher negra. Daphne era amorosa, forte e inteligente. Batalhou muito para conquistar tudo o que tinha. Seus olhos escuros e seu sorriso contagiante ainda estavam vívidos em meu coração. Como eu sentia falta dela! Infelizmente, ela já não se encontrava mais entre nós.
Ela me ensinou a ter uma afirmação positiva da minha identidade negra, a construir a minha autoestima (que nem sequer existia), a valorizar e me orgulhar da cor da minha pele, dos meus traços e da textura do meu cabelo. Aprendi que, apesar da luta incansável dos meus ancestrais pela vida, eu ainda precisava continuar lutando pela minha. Entendi que eu precisava sobreviver em um mundo que claramente odiava a minha existência e dos meus irmãos. E que precisávamos continuar resistindo uns pelos outros.
Logo depois que Daphne faleceu descobri que ela havia deixado a pensão para mim. Foi um choque, mas no bom sentido. Então eu vendi a pensão e comprei um modesto loft. A loja de música na qual eu trabalhava não ia muito bem das pernas e o dono, um homem ranzinza, a colocou à venda. Usei o restante do dinheiro que havia me sobrado e comprei a loja, afinal eu amava música. O investimento deu certo e a The Drum's se tornou o sonho que só então descobri que tinha.
— Esther Blossom, isso é incrível! — disse Kate entusiasmada assim que pisou na loja pondo fim às minhas divagações.
— É, eu também acho — concordei sorrindo.
Kate andou pela loja atenta a cada detalhe. Eu me sentia radiante em um nível estratosférico com o fato de que nós duas havíamos vencido na vida sem precisar abandonar a música para isso.
Contornei o balcão e liguei meu toca-discos fazendo com que a voz de Ella Fitzgerald ecoasse pela loja. Minha amiga sorriu e fez um gesto para que eu aumentasse o volume. Balancei a cabeça em negativa preocupada com que Thomas pudesse ir até ali caso eu o fizesse, ciente do quão ridículo aquilo era. Sorte a minha que ela pareceu não se importar estando mais interessada em olhar os instrumentos e testá-los vez ou outra.
— Estou muito orgulhosa pela sua conquista — comentou ela depois de um tempo em silêncio.
Arqueei as sobrancelhas confusa enquanto ela se sentava no banco que acompanhava a bateria.
— Sempre me preocupei com você, quero dizer com toda a questão do racismo somado a sua orfandade.
—Bom, eu sobrevivi. Sempre me mantive longe de encrenca, sabe como é, não fazemos parte do grupo privilegiado.
Não mesmo, na Juilliard isso ficou bem óbvio para mim — concordou.
Kate vinha de uma família rica. Isso não mudava nada, uma vez que o problema claramente estava na cor da sua pele. Nós éramos o alvo, nos viam como uma ameaça ainda que não fôssemos uma. O racismo nos relegava de várias formas.
— Pelo visto, sua experiência não foi em nada menos desafiadora do que a minha — murmurei.
— Uma das minhas maiores dificuldades era a falta de representatividade que reforçava o estereótipo de que ali não era o meu lugar.
— O ambiente acadêmico sempre me pareceu um poço de hostilidade, Kate, tanto que nunca quis ir para a faculdade.
— Hã... Que tal a gente mudar o rumo dessa conversa? — propôs sorrindo, mas era um sorriso triste.
Para a minha melhor amiga era um sacrilégio eu não querer ir à faculdade, algo em que nunca concordamos. Respirei fundo e tentei pensar em alguma coisa que fosse menos polêmica do que nossas problemáticas sociais enquanto mulheres negras. Nada me veio à mente e minha incapacidade momentânea pareceu divertir Kate. Pelo menos, agora seu sorriso chegava aos olhos.
— Tenho uma namorada que ainda está na faculdade — revelou numa clara tentativa de mudar de assunto.
Lembrei-me de que Kate sempre gostou de meninas.
— E você? — prosseguiu ela.
— Eu? Que eu me lembre não tenho nenhuma namorada na faculdade — falei rindo e Kate revirou os olhos.
— Deixa de ser boba, Esther, quero saber se tem alguém ocupando esse coração aí?
— Nada de namorados!
— Não?
— Não!
— Nenhum affair? — questionou.
— Tem um cara que eu quero matar na maior parte do tempo.
— Já vi tudo, amor e ódio! — disse ela empolgada.
— Não só ódio, é o Thomas Castillo, se lembra dele?
— O garoto que gaguejava?
— Não, o que era racista.
— Esther, o racista era o outro Castillo — afirmou convicta.
Certamente Kate não se lembrava com clareza de que os dois garotos eram racistas.
— Eu preciso ir e você precisa trabalhar — salientou ela quando um cliente entrou na loja. — Nos vemos na Bourbon Street à noite?
— Com certeza! — concordei sorrindo.
Me endireitei e fui para trás do balcão atender o cliente enquanto Kate deixava a loja.
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Oi pessoal, capítulo postado com um atraso considerável, me desculpem por isso. O começo da semana foi corrido por aqui. Espero que gostem, não esqueçam de curtir e comentar!!!
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Jazz, livros e o amor no meio disso
RomanceEsther Blossom respira música, já Thomas Castillo inspira livros. O que esses dois têm em comum além de traumas do passado? Esther é uma mulher forte que já sofreu muito e encontrou nas divas do jazz um reconhecimento e uma fonte de inspiração. Vivi...