Embora minha despensa estivesse devidamente abastecida, eu andava apressada em direção ao Café Du Monde. Os sonhos conturbados da noite anterior me fizeram perder a hora, o que me impediu de preparar eu mesma meu desjejum.
Argh! Eu não estava nada feliz de ter aquele pirata perturbando meus sonhos. Ou melhor me fazendo ter pesadelos. Sua aparência sexy e despojada não devia ter o poder de me atordoar como havia feito, mesmo eu me encontrando em um estado onírico. Ainda mais depois do que ele havia feito. Aliás, que cara grosso, será que a mãe dele não havia lhe ensinado que era feio ficar virando as costas para os outros não?
Ele me ignorou, eu odiava ser ignorada. Não que eu me importasse com o fato dele me ignorar. Eu detestava ser ignorada no geral. Ok, talvez aquilo me incomodasse um pouco, admiti para mim mesma. O que fazia de mim a pessoa mais contraditória do universo inteiro. Eu queria ou não que ele ficasse longe de mim?
Entrei no café e senti o aroma delicioso que pairava no ar. Caminhei até o balcão, fiz meu pedido e, enquanto aguardava que minha preciosidade com creme me fosse entregue, eu apreciava a vitrine tentadora e açucarada. Foi então que notei uma garota também negra a poucos metros de mim. Ela aparentava ter aproximadamente a minha idade e usava box braids perfeitas, que lhe caíam pelos ombros, realçando ainda mais seus belos traços. Eu não cabia em mim de orgulho quando via uma "irmã" tão empoderada. As que ela orgulhosamente ostentava iam muito além da vaidade. Com origem africana, elas simbolizavam a força da mulher negra e de suas ancestrais. Sorri para mim mesma. Ela me olhou de esguelha e eu tive a ligeira impressão de que a conhecia, de repente ela me pareceu familiar.
O barista se aproximou do balcão segurando dois copos fumegantes na mão.
— Café com creme para a senhorita — disse ele para a garota. — E café com raiz de chicória para a senhorita — disse ele para mim.
Nos encaramos achando graça pela confusão dele. E eu me adiantei para pegar da sua mão o copo onde lia-se Esther deduzindo obviamente que Kate era o nome da garota. Um gritinho de satisfação cortou minha linha de pensamento e eu voltei a encarar a garota, que me fitava de olhos arregalados franzindo o cenho.
— Mercúrio não está mais retrógrado — disse ela empolgada. — Ou eu não reencontraria Esther Blossom!
Eu inclinei a cabeça olhando-a incrédula. "Não seria possível, seria? Melhores amigas que se mudavam depois do colegial retornavam à sua cidade natal?", me perguntei.
— Sou eu, Kate Johnson! — apresentou-se ela impaciente.
Meus olhos marejaram com lágrimas de surpresa e felicidade. Minha única e melhor amiga estava de volta. É que Kate tinha saído de Nola para cursar música na Juilliard em Nova York. E eu pensei que nunca mais voltaria a vê-la.
O barista nos encarava irritado, já que atrás de nós se formava uma fila considerável. Mais do que depressa, ela pegou seu copo e depositou uma nota de dez dólares para pagar pelas nossas bebidas e me puxou para fora do café.
— Como me reconheceu? — indaguei a ela admirada.
— Ora, não podia ser mera coincidência! — exclamou zombeteira. — Um copo de café com creme para alguém chamada Esther.
Ela balançou a cabeça achando graça e bebericou sua bebida.
— É a única Esther que eu conheço com esse paladar apurado — zombou ela.
Revirei os olhos em resposta.
A vida podia sim nos surpreender, Dylan estava certo. Eu estava diante da minha melhor amiga depois de tanto tempo. Só então percebi o quanto sentia falta dela. Éramos inseparáveis no colegial por termos a música como paixão em comum e também por sermos as únicas adolescentes negras na classe.
— Espero que todo esse silêncio seja resultado da emoção que está sentindo por me reencontrar.
Dei a Kate um sorriso torto e a puxei para um abraço apertado, que eu esperava que fosse capaz de traduzir tudo que eu estava sentindo naquele momento e que era incapaz de dizer.
— Sem dúvidas é a emoção — concluiu ela divertida.
— Você continua a mesma palhaça de sempre — constatei sorrindo nostálgica.
— Com a diferença de que agora sou graduada pela Juilliard — declarou ela orgulhosa.
— Fico feliz, afinal era esse o seu sonho.
Kate empertigou-se
— Não fazia parte do meu sonho perder sua amizade, Esther.
— Você não perdeu a minha amizade. Perdemos o contato devido aos caminhos que seguimos e isso acabou nos distanciando.
— Não era mentira quando dizia que nossa amizade era do colegial para a vida.
Lembrei-me das inúmeras vezes em que Kate disse aquilo para mim na época do colegial. Sua amizade é que me ajudou a enfrentar os momentos de bullying e ataques racistas, ao contrário de mim, por conta de sua condição financeira todo preconceito direcionado a ela era velado. Sair do orfanato e encontrar Kate no colégio era o ponto alto do meu dia. Até conhecê-la, eu não sabia o que era poder contar incondicionalmente com alguém. Foi então que eu compreendi que, quando nos vemos sem esperanças de dias melhores, um amigo é sempre um alento.
— Nunca achei que fosse — disse com os olhos começando a marejar novamente.
— Então por que você nunca me ligou? — Kate questionou.
— Como eu poderia, se você não deixou nenhum número de telefone ou um endereço sequer?
Ela sacudiu a cabeça incrédula.
— Do que está falando? Eu fui até o orfanato me despedir de você, a diretora disse que você não estava que havia saído para fazer uma tarefa. Meu voo partia em uma hora. Então, eu deixei meu telefone e endereço de Nova York para que ela pudesse te entregar.
— Eleanor nunca me entregou nada, nem mesmo mencionou que você esteve lá! — falei exasperada.
Atitudes como aquela ou até piores eram típicas da diretora do orfanato. Ela sempre foi uma mulher perversa, naturalmente cruel. Estremeci ao me lembrar dela. Trajando sempre um impecável uniforme cinza e constantemente mal-humorada como uma megera vinda diretamente de um filme de terror, o que lhe comprazia era infringir castigos aos órfãos do orfanato St. Vincent.
— Não acredito que ela foi capaz de algo tão perverso assim! — exclamou atônita. — Então quer dizer que esse foi...
— O único motivo para eu nunca ter te procurado depois do ensino médio — interrompi-a.
Houve um momento de silêncio enquanto absorvíamos o desfecho de um mal-entendido que nos afastou por anos. A compreensão mútua de que nenhuma de nós abriu mão uma da outra. Então sorrisos enormes se espalharam por nossos lábios ao mesmo tempo.
Palavras não eram mais necessárias. Esse sorriso significava que não precisávamos mais remoer o passado. O que importava era o daqui para a frente. Era a amizade que fora capaz de sobreviver ao tempo e a distância. Eram as novas lembranças que seriam construídas. Não podíamos recuperar o tempo perdido, mas podíamos receber de coração aberto o que viria de agora em diante cuidando para que nem a distância nem ninguém interferisse novamente.
Em meio às minhas reflexões, subitamente me lembrei de que precisava abrir a loja, dando uma rápida conferida no relógio vi que a hora já ia adiantada. Minha nossa!
— Vem comigo, preciso abrir a The Drum's.
E a The Drum's, é? – inquiriu Kate curiosa.
— Eu te conto no caminho.
Espero que estejam gostando da história até aqui. Não deixem de curtir, comentar e compartilhar com um amigo!!!
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Jazz, livros e o amor no meio disso
RomanceEsther Blossom respira música, já Thomas Castillo inspira livros. O que esses dois têm em comum além de traumas do passado? Esther é uma mulher forte que já sofreu muito e encontrou nas divas do jazz um reconhecimento e uma fonte de inspiração. Vivi...