Os espinhos de uma rosa

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Isso não me machuca
Você quer sentir como é?
Você quer saber que isso não me machuca?
Você quer ouvir sobre o acordo que estou fazendo?

Você e eu
Você e eu não seremos infelizes

(Running up that hill - Kate Bush)

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Um bebê abandonado em um jardim de rosas venenosas, assim começa a história de Albafica. Claramente abandonado para morrer naquele cemitério vermelho, saberia Deus porquê. O que teria feito um bebezinho tão bonito para ser condenado assim? Essa também foi a pergunta de Rugonis quando o encontrou. Tão branquinho e sereno, parecia um rosa branca naquela vermelhidão. "Rosa alba", sim, parecia um bom nome. Albafica.

Ao menos por alguns anos, Albafica foi a redenção de alguém. Na solidão em que vivia, mestre Rugonis encontrou naquela criança abandonada tudo que havia perdido: companhia, alegria, afeto, esperança. O criou realmente como seu filho, e conforme ele crescia, percebeu que o garoto também tinha potencial para ser seu sucessor.

Aos 14 anos, o mestre deu início ao Elo Carmesim, o treinamento necessário ao sucessor de Peixes, em que Rugonis trocaria seu sangue envenenado com o de Albafica, por meio de uma única gota a cada dia, até que o sangue do rapaz fosse tão forte quanto o do mestre, por desenvolver resistência.

O começo foi realmente horrível, Albafica tinha certeza de que poderia morrer a qualquer minuto. Sentia dores tremendas, falta de ar que beirava a asfixia, vômitos, todo tipo de sintomas que levaria uma pessoa comum à morte. Por semanas se afastou dos treinamentos, sem conseguir se levantar da cama. Suportou a tudo dolorosamente, com a motivação de deixar seu mestre orgulhoso e continuar lhe fazendo companhia por muito tempo como seu sucessor.

– Ele não havia me contado todas as consequências desse treinamento. – diz Albafica com pesar. Alexia ouvia atentamente a sua narrativa.

E então veio o primeiro acidente. Era para ser só mais uma tarde de treinamentos, luta corpo a corpo com os outros aprendizes. A peste do discípulo de Hakurei, o Manigold, vivia provocando-o, e ainda se dizia seu amigo. Era um dos poucos que conseguiam lutar de igual para igual - estavam destinados a serem cavaleiros de Ouro, e já nessa época se destacavam. Eram os dias dourados, que foram pintados de vermelho, assim como todos os seguintes na vida de Albafica.

"Você está bem, Manigold?"

O pisciano notava algumas caretas do amigo enquanto treinavam, e ele estava mais ofegante que o normal. Mas é claro que ele não admitiria.

"Você tá me debochando?", retrucou ele.

Em cinco minutos, Manigold caiu ao chão, agonizando de dor. Albafica se ajoelhou perto dele. O rosto do italiano estava ficando roxo, ele estava se asfixiando. Albafica havia se machucado, estava sangrando e não pensou que seria um problema, porque parecia pouca coisa.

Mas foi um problema. Pegou Manigold nos braços e subiu o mais rápido que pôde para se encontrar com o mestre Rugonis, que tinha um antídoto para esses casos simples. Mas dali em diante Albafica foi orientado a não treinar mais na arena comum e com os outros aprendizes. Foi assim que ele se isolou na antiga arena em ruínas. Não poderia cogitar colocar outro amigo em risco, e entendeu que dali para a frente, teria de viver exatamente como seu mestre, tomando muitos cuidados.

– Nós só tínhamos um ao outro. – ele se engasga durante a narrativa. Tocar nessa parte da história ainda era doloroso, apesar dos anos que se passaram.

– Você o ama, e o amor não morre nunca. – consola Alexia.

– A culpa às vezes pode ser tão imortal quanto o amor. – responde, e então toma fôlego para continuar sua história, com Alexia apertando forte sua mão.

Parecia que os dias de transfusão por meio do Elo Carmesim estavam chegando ao fim. Coincidentemente, o mestre Rugonis estava doente de alguma coisa, o que era estranho para um homem como ele, mas sempre que Albafica perguntava, o mais velho espantava todas as suspeitas. E foi em um desses dias que, sem saber, mestre e discípulo trocaram a última gota de sangue.

O mestre fraquejou e caiu. Foi o tempo de Albafica ampará-lo nos braços, e ver seu sorriso orgulhoso.

"Quem diria, você me superou, Albafica."

"O que você tem, mestre? Eu vou chamar ajuda", respondeu assustado. O mestre fechou os olhos, resignado.

"Não há o que fazer, menino. É assim que acontece a todos os Peixes."

"Não!", ele gritava "porque o senhor não me falou? Porque?"

O mestre sorriu, um sorriso apenas nos lábios e quase sem forças de se fazer. "Você é uma criança boa", foi a última coisa que disse antes da vida deixar seu corpo. Albafica o abraçou forte, chorando lágrimas de desespero, não podia ser verdade. Estava sozinho outra vez, sua única companhia havia partido, e a culpa era toda dele. Não queria superar o mestre se a morte fosse o preço, ele jamais faria isso. Rugonis era sua única família, e agora tudo que lhe restava era o veneno e as rosas.

– Eu nunca vou me esquecer. Foi assustador ter um homem do tamanho do mestre Rugonis caído daquele jeito, tão magro, tão frágil... e eu não sabia, a pior parte era que eu não sabia que o fim do Elo Carmesim é a morte para um dos lados.

Alexia estava inerte feito uma estátua. Não sabia como reagir. Não havia passado por sua cabeça que a causa da morte do mestre de Albafica fosse o próprio Albafica. Finalmente conseguia entender a culpa patológica que o acometia e toda a solidão autoflagelada. Era cruel pensar que uma pessoa havia nascido para simplesmente ser solitária uma vida toda, e pior: carregando dores que não se curavam.

Não podia aceitar esse destino tão maldito para os cavaleiros de Peixes. Era extremamente injusto.

– É por isso que estou lhe pedindo Alexia, escolha ir embora. O Elo Carmesim é uma disputa de um único vencedor, e eu não posso suportar sequer a ideia... de ser o culpado de sua morte.

Albafica limpa a lágrima que havia escorrido furtivamente por seu rosto, e Alexia o abraça. Queria colar os cacos de seu coração com o aperto de seus braços. Não poderia mais deixá-lo, nem se quisesse. E acima de tudo: não podia aceitar aquele destino. Seria contra seus valores simplesmente se conformar com aquela sentença. "Você é excepcional", dizia a voz de Selinsa em sua cabeça. Então, queria acreditar que essa excepcionalidade era seu dom pessoal, uma fé quase cega de que conseguiria ser a exceção do Elo Carmesim e quebrar aquele ciclo desgraçado de solidão e veneno.

Ser um cavaleiro era muito mais que isso.

– Me perdoe. – murmurou, o rosto enterrado na curva do pescoço dele – Eu fico.

– Não – soluça Albafica – Você ouviu, não podemos encarar isso...

– Eu fico, eu fico – interrompe ela – Eu não posso aceitar que o Elo Carmesim seja maior que nós!

A Nova RosaOnde histórias criam vida. Descubra agora