Dor

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Entro em silêncio no palácio. Não sei onde ele está, sumiu um pouco antes de chegarmos ao eluvian.
Meu corpo todo dói.
Estou nua e, com muita dificuldade, entro na banheira. A água morna envolve meu corpo, fazendo com que todas as feridas abertas ardam. Agarro as laterais da banheira e mordo o canto interno da bochecha para não gritar.
Tento ir relaxando aos poucos, mas minha cabeça está doendo, tudo rodando. 'Estou envenenada?'
A água da banheira fica turva com meu sangue misturado com terra. Me levanto com certa dificuldade e me enrolo no macio roupão. Minha alma dói também.
Finalmente me sento na beira da cama. Me sinto fraca e faminta. Duas batidas na porta e silêncio. Abro a porta e vejo um carrinho de serviço com uma bandeja com pão, frutas e chá. O chá denuncia que algum criado preparou aquela refeição.
Como e me sinto bem melhor.
Em frente ao espelho eu tenho fechar o ferimento maior com pontos pequenos. Não é fácil evitar as lagrimas a cada ponto.
Me deito e simplesmente apago. Mais uma noite sem sonhos.

Na manhã seguinte sinto dificuldade para sair da cama. Uma fraqueza, tontura... Sinto meu estômago revirando... Eu saio a procura dele pelo palácio mas não encontro ninguém. Nenhum criado, o que aliás é bem comum, eu quase nunca os vejo.
Mesmo assim eu vou até a cozinha e preparo algo para comer mas não consigo. Meu estômago não aceita o pão então me contento com o café, enquanto penso no que aconteceu no dia anterior. Os olhos aflitos de Dorian vão me assombrar para sempre...
Passo aquele dia sozinha, escrevendo no diário, relatando com a maior precisão possível tudo o que vi naquela floresta. Nunca imaginei que sentiria tanto medo ao vê-lo.
Já é noite quando ouço barulho de passos, me levanto rapidamente para tentar alcançá-lo. A porta do seu quarto se fecha não me dando a chance de vê-lo. Eu fico ali parada, na frente da porta entalhada em carvalho marrom, não tenho coragem de bater.
'O que eu faço?'
- Pode entrar, Vhenan. E feche a porta.
Quase me engasgo com o susto que levei! Abro a porta e entro, meus ombros encolhidos doem.
Caminho para próximo a sua cama. Nunca havia entrado aqui. Ele está no banheiro, então espero de pé. Apesar do medo, estou ali preparada para o que for preciso enfrentar.
Ele sai do banheiro em um belo roupão num tom de vinho, um tecido que parece ser bem macio. Sinto um estranho desejo de tocar aquele tecido. Talvez seja minha mente buscando subterfúgios para a situação em que me encontro.
Ele se senta na cama e dá tapinhas no lugar ao lado. Eu me sento e espero, em silêncio.
- Você já havia me prometido não se intrometer... - sua voz tem um tom condescendente.
Aceno com a cabeça baixa. Sinto sua mão tocando suavemente o ferimento em meu ombro, um brilho e o ferimento cicatriza.
- Obrigada... Eu não tinha a intensão de me envolver mas quando os vi... - suspiro - São seus amigos também!
Eu o olho nos olhos, querendo encontrar algum sinal de compreensão ou compaixão, mas não consigo. Não havia nada ali.
Ele solta um longo suspiro.
- O que eu faço com você, Vhenan?
Eu sinto que não deveria falar nada, talvez foi uma pergunta retórica. Mas ele aperta meu ombro com uma certa força.
- O que eu faço com você, Harillan? (Traidora)
Eu engulo em seco, sabendo que nesse momento estou encrencada.
- Não sou mais Vhenan?
Me arrependi imediatamente por tentar fazer uma piada, seus olhos estão brilhando, e sua face exibe uma expressão realmente assustadora.
- Quero que você me diga o que devo fazer com você, ou eu mesmo escolherei a punição adequada, harillan!
Eu pisco algumas vezes, talvez tentando impedir as lagrimas teimosas de cairem. Me ajoelho e baixo a cabeça.
- Estou pronta para a punição que julgar necessária, Fen'Harel.
Não tenho coragem de olhar, mas permaneço imóvel, a espera do que quer que aconteça.
- Levante-se.
Obedeço com dificuldade, pois meu corpo ainda dói. Não olho diretamente para ele, mantenho minha cabeça baixa.
- Vá dormir e tente descansar pois amanhã você vai comigo.
Sinto um nó no estômago e o olho nos olhos. Sua expressão é séria e soturna.
- Vou aonde?
Ele gesticula para que eu saia do seu quarto, o que eu faço prontamente.
Já no meu quarto, me deito e encaro o teto decorado.
'Estou exatamente onde queria estar, agora tenho que aceitar as consequências.'

Naquela manhã mal tive tempo para o café. Ele já estava a minha espera, do lado de fora do palácio.
Caminho em silêncio ao seu lado. Nesse momento me sinto tão pequena, ou não me lembrava que ele era tão alto.
Atravessamos um eluvian e na encruzilhada ele para e me encara.
- Hoje você vai entender o que está acontecendo.
Permaneço em silêncio, sentindo um vazio enorme crescendo dentro de mim.
Nos atravessamos o eluvian e me vejo no meio de um intenso campo de batalha, vários demônios e criaturas menores marchando sentido uma vila. Poucos guardas tentam impedir que as criaturas atravessem a entrada da vila, mas uma resistência ineficaz. Olho para a cena e me sinto fortemente compelida a lutar mas entendo porque estamos aqui.
Olho para cima e o vejo me encarando, sério, sobrancelhas próximas e um brilho sombrio no olhar.
Uma criatura menor passa por entre nós dois mas não há choque. É como se não estivéssemos naquele local. Eu caminho no meio da batalha, observando os guardas feridos e exaustos resistindo inutilmente. Um deles é ferido moralmente por um demônio da ira e tomba, de joelhos bem na minha frente, ainda respirando, com os olhos arregalados que transmitem um horror inexplicável, a visão da vida deixando o corpo. Dou um passo para trás, sentindo os músculos do meu rosto retorcendo involuntariamente.
O outro soldado cai, sangue jorrando do seu pescoço. Ele tosse e o som que imite me causa pânico. Logo para de se mover.
Os demônios avançam, invadindo a vila onde, somente os homens permanecem para lutar. Mas não são soldados, são camponeses que caem, um após o outro. Um jovem, de no máximo 20 anos, é degolado na minha frente, muito sangue jorra.
Me sinto tonta. Posso sentir o cheiro ocre de sangue fresco. Mas continuo a caminhar no meio do mais profundo caos.
Um demônio da inveja fere no peito um jovem rapaz, que bravamente luta pela vida, sendo jogado contra a parede de um celeiro. Eu me aproximo e me abaixo próximo a ele que respira com dificuldade.
- Sua adaga está com você? - sua voz sobrenatural ressona dentro da minha cabeça e me assusta.
- Sim, por quê? - mas me arrependo de perguntar no mesmo instante.
Olho para cima e vejo aqueles olhos brilhando na minha direção.
Eu sei o que preciso fazer. Puxo minha adaga da cintura e olho para o rapaz que parece não me ver. Ele ofega com dificuldade, sangue esguichando do ferimento em seu peito. No momento em que me aproximo ele olha diretamente para mim.
- Quem é você?
Eu congelo na hora.
- Você pode me ver?!
O jovem sorri e tosse sangue.
- Nunca pensei que minha morte seria assim... - ele tosse de novo - uma bela mulher me levando...
Com um golpe rápido e limpo abro as artérias de sua garganta. Sua cabeça tomba para frente e sua respiração cessa. Limpo minha lamina em sua blusa e me levanto.
Olho para cima, encarando Fen'Harel. Sinto uma chama queimando dentro do meu peito.
- Essa foi minha punição?
Ele balança a cabeça.
- Não. Essa foi apenas uma lição que você precisou aprender.
Serro meu punho mas tento não demonstrar o ódio que sinto.
- Mais alguma lição?
Ele balança a cabeça e caminha de volta para o eluvian. Eu permaneço ali parada, entre cinzas, sangue e lágrimas.

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